domingo, 29 de agosto de 2010

Dia-a-dia


Declare this an emergency
come on and spread a sense of urgency
and pull us through
and pull us through
and this is the end
this is the end of the world”
(Muse – Apocalypse please)


O dia estava um pouco enrijecido pelo frio. Finalmente um daqueles dias de outono em que ela podia sair de luvas coloridas ao lado da mãe. Saíam para fazer compras, afinal logo seria o seu aniversário e preparariam uma grande festa.

Ela esperava que a mãe estivesse mais animada, mas mesmo fazendo várias brincadeiras, não conseguira fazer brotar aquele riso sincero que fazia com que ela não se sentisse só. Andavam rapidamente em direção ao centro da cidade, havia congestionamentos mesmo na segunda-feira e, além disso, o som da cidade ecoava por todos os ouvidos, as buzinas, os passos, a pequenina mulher tentando agarrar sua mão e prometendo o futuro, o rolar das portas causado pela abertura das lojas, os pneus rolando, a confusão das vozes e dos gritos 2 por 10 de um vendedor de dvds na calçada. Sua cabeça se abria em um labirinto - cogita se o telefonema do seu pai, no dia anterior, chateou a mãe, ou, se talvez o aborrecimento fosse somente porque a mãe não gostava de vê-la assistindo àquela série muito adolescente que passava todos os dias, ou talvez estivesse insatisfeita por causa das notícias do mundo. Já não estava tudo muito violento? Sempre ouvia a mãe dizer que em outros tempos as coisas não eram assim, que tudo era melhor. Também ouvia seu avô dizer que no tempo dele tudo era ainda melhor que no tempo da sua filha. Às vezes, quando percebia, estava em alguma aula e imaginava como eram as aulas que sua mãe ou seu avô tiveram e percebia-se numa encruzilhada quando, em alguma aula de história ou em algum tempo navegando na internet, via que sempre houvera guerras e disputas, inclusive na época de seu avô e, pior, as pessoas não podiam dizer o que pensavam, eram presas não sabiam bem o porquê. Caíam estatelados no chão os sonhos com os quais ela criava um mundo grande e melhor do que agora e, é claro, provavelmente, a professora já teria apagado uma parte do que escrevera na lousa e ela não teria copiado.

Um cheiro acre e que lhe lembrava urina do seu gato misturada com vômito tomou toda a rua pela qual passavam.

Mãe, que é isso?

Shhh... é o moço ali – respondeu baixinho.

Mas, mãe, por que a gente não ajuda ele? O cabelo dele tá fazendo ele parecer o homem das cavernas do meu livro de história. Vamos levar ele lá na tia Marta pra ela cortar.

Não fica olhando. Não fica olhando, Érika. Érika!

Foi quando o mendigo, que tinha roupas esfarrapadas e o cabelo e barbas há muito por serem feitos, e o cachorro com quem ele brincava, olharam para mãe e para filha. Érika achou que aqueles eram olhares tristes, mas não teve muito tempo para pensar, pois só viu a boca do homem mexendo e viu que se dirigia a sua mãe:

Ô Dona, não precisa ter medo não. Não vou roubar sua filha, já tenho o meu aqui. Não sou ruim não, só bebo um pouquinho, né, Moby Dick? Mas é solução pra vida, num é não? Tem gente que num enxerga o problema, eu enxergo a solução, moça... tudo muito ruim e num tem emprego, não...Só Moby Dick fica aqui com...

Mas não foi possível ouvir nada mais, os passos rápidos e puxões da mãe deixaram pra trás o ar pesado e as palavras perdidas do homem. Como ele havia ficado assim? Sem ninguém e sem lugar?Aqueles pensamentos passaram rápido como os puxões da mãe. Afinal, o passeio era longo: loja de brinquedos, loja de festa, quem sabe uma oferta de sorvete e, a última parada seria o banco. Todavia, não sentira medo...

○○○○

Rubens sabia bem como a vida estava um terror. Era seu último ano num curso de humanidades e ele nunca soubera bem qual deveria ter sido seu lugar durante todos os quatro anos. Talvez se importar com isso fosse uma grande bobagem, pensava nos diversos estilos de vida que cada um escolhia para si, e, refletia, na faculdade essa é uma das maneiras de separar os grupos. Desempregado, estudando coisas que o faziam refletir sobre muitos assuntos que sempre gostara, a vida passando, as pessoas gritando ali, outras conversando aqui, ele sempre sem rumo e se deparando com a crítica de um filósofo sobre o fato de parecer estranha e deslocada à sociedade a entrega de um sujeito a algo que não serve para algum fim.

Enquanto alguns diziam “Mas você ainda é muito novo, tem tempo para decidir”, outros comentavam “Olha, mas você vai fazer o quê quando se graduar? Ainda não sabe?”, sentia-se numa encruzilhada, só que sem opções. Ultimamente só pensava em dormir e amaldiçoava todos os dias, que o esperavam com mais e mais tarefas e problemas e questões existenciais. Não mais sentia fome e, quando sentia, costumava comer qualquer coisa enlatada. Havia tempos não via sua família, só conseguia pensar nos afazeres e na falta de vontade de seguir com os mesmos, além da iminência das provas finais. Acabou nem reparando que aquilo que um dia lhe proporcionara prazer, agora estava jogado em um porão trancado.

Sempre fora muito ansioso, mas com o tempo começara a ter algumas doenças relacionadas ao nervosismo e às preocupações, sua asma se agravara, seus cabelos caíam em proporções anormais – houvera a necessidade de dizer ao médico que mais de 100 fios caíam por dia para que ele ficasse em dúvida entre estresse e alguma herança genética-, adquirira uma úlcera que não o deixava dormir nas poucas noites em que não tinha insônia. Suas olheiras haviam aumentado consideravelmente e agora era comparado a diversos personagens da literatura popular.

Hoje era um daqueles dias cheios para Rubens, quiçá também fosse um dia cheio de Rubens. Ele acordara às seis, pegara dois ônibus com pessoas  grudadas em janelas até chegar à faculdade, enquanto tentava ler o segundo dos três textos para a aula das oito horas. Depois das aulas, ele comera uma maçã e um sanduíche que trouxera de casa e nos intervalos desse almoço, digitara um artigo acadêmico que tinha como prazo máximo de entrega quarenta e oito horas. Após algum tempo, dirigira-se a uma reunião do jornal da faculdade, em que ele escrevia. Fez tudo isso sem indagar-se em nenhum momento se o que fazia era certo, bom ou suficiente. Atrasado, percebeu que precisava pegar o ônibus em direção ao centro da cidade e cumprir alguns afazeres como ir à farmácia, pagar contas e procurar emprego.

No caminho, conversas e músicas vindas de diversos celulares ecoavam, enquanto ele cochilava com o balanço do ônibus e batia, incessantemente a cabeça no vidro a cada lombada, buraco ou parada. Até o frio parecia abafado no percurso. Mais pessoas entravam.

○○○○

Tudo parecia estar em ordem.

A tarde correra sem mais incidentes, apesar da demora e da indecisão de mãe e filha em escolherem o que seria melhor para a festa e o que agradaria mais as pessoas. O aniversário era uma festa esperada por Érika, mas ao mesmo tempo, ela sentia medo. Haveria muitas pessoas e muitas expectativas num mesmo lugar. Se pelo menos fosse uma época em que ela estivesse menos marcada, com menos problemas na escola, com menos dificuldades na família. Estigmas demais e concretizações de menos, era isso que ela pensava, embora não com essas palavras. Pensando agora, talvez fosse isso que preocupasse sua mãe: ir a cada dia em um médico ou terapeuta diferente. Já a levara a todos os tipos, psicólogos, psicanalistas, psicopedagogos, neurologistas, cardiologistas, acupunturistas e outras tantas opções. Nada tirava essa atitude contemplativa e a lentidão da filha, enquanto isso, no prontuário médico os mais diversos diagnósticos rapidamente chegavam.

Entravam e saíam da última loja.

Érika não conseguia achar os problemas de que tanto falavam os médicos, mas via problemas na sua própria família - nenhum médico ia visitar sua casa, muito menos se propunha a trocar de lugar com ela por alguns dias. Seus pais viviam juntos até alguns meses, quando ela viu a “maior briga do universo”, como definia, “maior até do que a do desenho, ontem”. A mãe ficara muito infeliz, além de jogar pratos na parede e tentar bater no pai, só que ela não tinha tanta força e acabara sendo empurrada e quebrara o braço. Depois daquele dia, não se falavam mais, mas Érika não se esquecera das moças ainda mais jovens que sua mãe que almoçavam na sua casa e que o pai trazia para ajudar no trabalho. Sempre soubera que alguma coisa estava errada. Após o episódio da briga, sua mãe tivera que se desdobrar para continuar trabalhando, pagando os médicos – desnecessários-, cuidar dela e da casa. Via o pânico, a insatisfação, os choros e o esforço da mãe. E ficava triste também, ainda que só observasse.

Gostaria de fazer mais pela mãe e de deixá-la despreocupada.

Estavam a dois quarteirões do banco.

○○○○

Ele já havia comprado os remédios que resolviam parte de seus problemas. Caminhava a passos rápidos, perdido em músicas que tocavam em seu ipod. “Cadillac used to be a Benz (hey, get out of the street)”. Não tinha dúvida, era um dependente químico, ainda que tivesse as receitas. Sempre pensava que, ao menos, não tinha problemas com cigarro. Contudo, tinha vários outros, tomava antidepressivos e calmantes, além daquele que não deixava sua hipertensão lhe matar. “I'm just a no-name reporter
I wish I had nothing to say”. Precisava correr, ou não teria tempo para distribuir mais currículos e chegar em casa para cuidar da irmã e estudar e se preparar para as tarefas do dia seguinte e...

Ele estava no chão. Nem percebera que esbarrara violentamente em alguém. Ouvia latidos, enquanto exigia que o espaço ao seu redor parasse de rodar. Sentia uma dor latejante no braço, ainda um pouco atordoado. Casa, estresse, ônibus, emprego, desemprego, faculdade, banco. Banco, estava indo ao banco. Olhou ao seu redor e colocou um dos fones que haviam saído de seu ouvido no lugar em que estavam antes. “Looking through my new camcorder, trying to find a crime that pays”. Reparou o provável, se esbarrara teria que ser em alguém. Viu que havia um homem no chão, com roupas puídas e cheirando sujeira, um cachorro latia. Apalpou seus bolsos e viu que a carteira ainda estava lá. Resolveu ver se o homem estava bem, só o que faltava para atrasá-lo ainda mais era um morador de rua ter se machucado e ter que levá-lo ao hospital.

- O senhor me desculpa, não vi que alguém tava vindo...

- Ah, filho, eu sei como é a vida do cêis, estudante, tem que ser cabeça. Eu também estudei, vivia com a cabeça nas finanças. Pára, Moby Dick, pára. O moço veio ajudar.

O cachorro ficou rosnando e olhando com uma expressão que o menino definiria como ciumenta, por não ouvir bem o que o homem dissera, Rubens ajudou-o a se levantar e tirou os fones do ouvido.

- E olha que eu estudei hein, mas bebi, bebi e fiquei bebum, só um pouquinho, a mulher chutou, a empresa também e eu fiquei assim ó – ele virava os dedos em direção à boca, como quem entorna uma garrafa. – Você devia é aproveitar a vida, em vez de olhar pra baixo enquanto anda, né, filho! Pensar em outras coisas, um pouco. Ah, obrigada pela ajuda, num tem um trocadinho, não? Não?

Ele virou as costas e andou sem olhar para trás. A música tocava novamente. “I get hit by the mortars, Everywhere I go I’m loitering, Chaos and disorder ruinin’ my world today”. Saiu caminhando, com o braço respingando sangue, do tombo. Irritou-se. Quem era esse cara pra dizer o que ele devia fazer? Duvidava muito que o homem realmente tivesse tido um bom emprego, ele devia é não ter vontade de trabalhar. Ao menos, Rubens tinha. Mas, não encontrava nada. E, ao menos, ele não bebia.

○○○○

Ela achava a porta giratória do banco uma coisa tremendamente bizarra. Enquanto esperavam, via diversas pessoas voltarem muitas vezes e depositarem três, cinco ou sete objetos, que variavam entre molhos de chaves, pendrives e relógios.Faltavam mais duas pessoas serem atendidas antes de sua mãe. Mais pessoas passavam pela porta.

“Por favor, deposite seus objetos metálicos ao lado”. Pó-rón. Era a senha chamando a pessoa anterior à sua mãe. Puu-run. Agora era o som da senha 550 para se dirigir até o caixa em que se deposita e paga contas.

“Por favor, deposite seus objetos metálicos”. A cada vez que se ouvia essa frase, muitas cabeças olhavam em direção à porta. Ela também olhou. Era um moço tentando passar, ele carregava uma mochila grande e havia deixado seu celular, suas chaves e seu pendrive. Procurava o que podia ser a coisa que atrapalhava sua entrada. Puu-run. Escolheu o guarda-chuva e tentou. “Por favor, deposite seus objetos metálicos”. Os guardas olhavam desconfiados. O rapaz voltou. Para Érika, ele não tinha cara de mau sujeito, mas ela sabia que as aparecias enganavam, ou era isso que tinha lido em algum lugar. Ele parecia cansado, seu rosto aparentava uma rigidez esquisita e suas sobrancelhas estavam franzidas. Também tinha uma careta na cara, que, ela imaginou, devia ser sua cara de emburrado. Dessa vez, ele depositava o porta-moedas e a carteira. “Por favor, deposite seus objetos metálicos”. Puu-run. Uma fila de pessoas ia se formando atrás dele e o guarda finalmente se moveu, dizendo que ele precisava ver a mochila do rapaz. O rapaz, mais emburrado ainda, disse que tudo bem. O guarda olhou e conversou com outro guarda. Então, ao sinal de mais um “Por favor, deposite seus objetos metálicos”, o guarda empurrou a porta e o moço entrou. Puu-run. Ao recolher tudo que ele havia depositado, ela aproveitou para tentar espiar pela mochila aberta. Parecia que só havia um fichário, mas isso não era nada emocionante, nem parecia suficiente. Ela só não sabia que fichários também disparavam o sensor da porta.

Pó-rón. Sua mãe foi em direção ao atendente.

Puu-run. O rapaz pegou uma senha e sentou-se a duas cadeiras vazias de Érika.

Havia muitas cadeiras e pessoas de todos os tipos. Por exemplo, um senhor que olhava no relógio a cada segundo - embora isso seja difícil, era o que lhe parecia. Puu-run. Uma mulher com quatro filhos que corriam pelo banco e gritavam como estivessem um em cada país, numa ligação horrível e com linha cruzada. Puu-run. Começava a se inquietar também, apesar de observar cada pequeno detalhe. O rapaz, ao seu lado, abrira um livro muito grosso e lia, ela percebeu que ele tinha um corte no braço.

- Você quer ler? – sobressaltou-se com a pergunta. Rubens olhava pra ela, numa mistura de irritação e divertimento.
Puu-run.

- Não sei ler direito. Os médicos dizem que eu tenho problemas.

- Mas você não consegue ler o nome do livro?

Ela pensou um instante. Sim, conseguia, e disse em voz alta.

-Ah, tá vendo. É bom ler, é um jeito de escapar. Cadê seu pai ou sua mãe?

- Minha mãe tá ali, no caixa - ela olhou e viu que a mãe estava com uma expressão triste e discutia por alguma coisa – Que número você é? Do que tá tentando escapar?

- Eu sou o 568. Escapar das coisas ruins, às vezes os livros ajudam. Esse barulho da senha não te irrita? Minha cabeça está doendo e eu preciso ler.

Ela concordou com o escapar, mas não sabia se era verdade. Não lia porque diziam que ela não sabia ler, apesar de conseguir ler todas as placas da rua. Eles conversaram por mais alguns minutos, cada um com sua dor escondida, tocando certeira e levemente em alguns pontos, mas nada substancial. Érika pensava que ele devia ser muito inteligente, reclamando sobre uma tal de burocracia do banco e sobre a porta – nesse ponto ela concordou veementemente. Rubens, com o braço latejando e um começo de enxaqueca, pensava que aquela era uma criança que já carregava um mundo nas costas e era destruída pela sociedade aos poucos.

○○○○

Finalmente estava em casa. Sentia que sua cabeça explodiria a qualquer momento. Quando tinha enxaquecas, não conseguia mais continuar com tarefa alguma. As pontadas começaram após seu encontro com o morador de rua e tornaram-se insuportáveis depois que entrara no último ônibus que viria para casa. Certificara-se que a irmã estava bem e trancara-se no seu quarto. Parecia que alguém puxava cada um dos seus fios de cabelo e gritava com ecos em seus ouvidos. Colocou uma música no rádio, mas os sons no ouvido diziam que ele era um vagabundo, que não fazia suas tarefas direito, que deveria se esforçar mais. Eram intermitentes e guturais.

Escolheu uma combinação de remédios e uniu-os aos remédios de rotina.

○○○○

A mãe havia dado broncas no caminho, sobre não falar com estranhos, sobre ficar no mundo da lua, pensando em nada. Marcaria uma consulta em outro médico e pediria algum medicamento que controlasse a atenção da filha.

Érika estava cansada. Não tinha culpa da falta de sucesso em conseguir dinheiro no banco. Não sabia que precisavam tanto assim, não sabia como ajudar. Se pudesse voltar atrás. Para que uma festa de aniversário? A mãe havia oferecido e ela aceitara. Não queria mais. Não queria ser chamada de lerda, burra ou qualquer outro nome que ouvia, até de sua professora e, agora de sua mãe. Não queria ir a mais de dez diferentes médicos com opiniões esquisitas. Sentia raiva e chorava silenciosamente. Ela desejava morrer. Suas luvas coloridas estavam encharcadas de lágrimas e seus soluços eram abafados por seu corpo em posição fetal. Não se lembrara em nenhum momento de livros. Sua mãe, ocupada, fazia contas e procurava outros bancos para ir, nem sequer havia percebido que a cada momento feria mais. Só queria conversar, ninguém conversava... não sabia de nada, a não ser aquilo que ela mesma descobria. Queria crescer de uma vez, queria poder agir. Não podia fazer nada, por enquanto...

○○○○

Os ruídos diminuíam, mas, em compensação, o mundo todo girava. Ele sentia uma espécie de neblina envolvendo-o, aquecendo-o. De repente, tudo começou a ficar quente, muito quente, insuportavelmente quente. Era o inferno. Ele sabia. Os ruídos continuavam, mas agora sabia que havia palavras, contudo não conseguia decifrá-las. Ficava ainda mais quente e mais difícil de sentir o ar, entrando e saindo do corpo. Ele queria pedir ajuda, mas, ao menor sinal de movimento, sentia que o sanduíche da hora do almoço jorraria de sua boca. Não se sentia bem, estava difícil respirar, era difícil manter o foco em qualquer lugar, a vida era difícil... O que estava acontecendo? Morria? Vivia? Não conseguiria ler o suficiente para amanhã, nem nunca. A música não parava de soar.

Já houve um tempo em que o tempo parou de passar

E um tal de homo sapiens não soube disso aproveitar

Chorando, sorrindo, falando em calar

Pensando em pensar quando o tempo parar de passar

Bruna Elisa Frazetto

sábado, 21 de agosto de 2010

Madá

O sino da igreja vizinha acaba de soar. Uma mancha rubra cobre o céu como se um ataque sanguinário tivesse aterrorizado o paraíso e suas vítimas tapassem as estrelas. O medo impera no pensamento das pessoas que saem da casa de Deus, aliviadas após a bênção divina. Tentam voltar o mais rápido possível a seus lares em meio a esta noite sombria.
 
Faz frio. O vento balança os cabelos de Madá, que está na frente da janela de seu quarto, com os olhos profundamente infiltrados em seus pensamentos.
 
A modesta luz do poste na rua ilumina o rosto do homem estirado no chão. Ele olha para a imagem de Cristo em suas mãos como se rezasse. Tem o corpo exalando sangue, empestando o ar.
 
Madá sente o rosto umedecer  ao levar as mãos de encontro aos olhos. Vira-se com calma para o espelho e ele revela a cor vermelha espalhada em sua face. Vê-se toda manchada daquela cor. É seu corpo nu. Corpo tantas vezes tocado por homens corrompidos. Seu objeto de trabalho, seu objeto de pecado.
 
Já não é mais aquela menina que mal tinha tamanho ou seios. É uma mulher! Tem corpo de mulher, rosto de mulher. Parecida com sua mãe, cuja lembrança só traz desprezo e nojo. Pelo menos agora não precisa mais pagar-lhe. O fruto de seu corpo é todo seu.
 
Sente um aperto no estômago, uma dor angustiante, uma ânsia de vômito. Algo que a faz curvar-se e ver o livro preto no chão, ao lado do espelho. Ele, o começo de tudo.

***

Era um dia muito quente. “Foi um belo sermão, padre”, disse a carola ao fim da missa, “Estou até emocionada”. Ele sabia que era mentira, mas mesmo assim agradeceu. Havia algo de errado naquele dia. Foi como se o Senhor houvesse lhe dado as costas e o tivesse abandonado sozinho no altar. Uma missa em que Deus não estava presente.
 
O sacerdote saiu amuado para a frente da igreja e ficou observando os fiéis que voltavam a seus lares. Era uma tarde de muito sol e a luz refletida no asfalto o fez tapar os olhos por um instante e virar o rosto em direção a uma casa vizinha. Ela estava entrando, sempre ela!
 
Quantas vezes não havia visto aquela mulher entrar em casa? Mas sozinha, era a primeira vez. Sabia muito bem o que se passava naquela casa e muitas vezes criticava a situação pecaminosa ao lado do templo santo. “Uma pouca vergonha, um absurdo!”. Mas ele sabia, também, que por trás da crítica havia um desejo. Um desejo que todas as noites ocupava seus sonhos, refletido na figura da vizinha. Ela agora entrava em casa; sozinha.
 
“Sozinha!”, pensava. De repente um sentimento estranho tomou conta de seu corpo. Uma força incontrolável que o guiava até aquela casa. O desejo por tanto tempo oprimido, finalmente invadiu sua carne.
 
Quando deu por si, já estava sobre ela. Fazia muito calor, mais que do lado de fora. Suava. Sentia um prazer que jamais havia entrado em contato. Um momento de êxtase, uma libertação. Eram anos de reclusão que saíam de seu corpo e invadiam aquele antro de pecado.
Então, o rosto que se deleitava em prazer, tomou para si uma expressão de desespero. Um grito choroso arranhou sua garganta e apoderou-se do quarto. Saiu correndo. Nem percebeu que havia deixado cair no chão, um livro preto.
 
Madá levantou as sobrancelhas e pensou: “Mais um louco”. E aquele objeto jogado no chão foi o único motivo pelo qual ela não reclamou seu pagamento. Era a primeira vez que a meretriz entrava em contato com as palavras de Deus. Aquilo, de alguma forma, despertou o interesse dela e tomou grande parte de seu dia. Um semblante de espanto e horror. Era mais que uma simples leitura. Era o início de uma guerra.
 
O Primeiro chegou, como de costume, às dezenove horas do domingo. Madá estava mais animada  do que sempre esteve. Era um impulso sombrio, quase psicótico. Seus olhos pulavam para fora, como se ensaiassem um ataque e as risadas simulavam a aproximação mortal de uma fera carnívora.
 
“Que fogo, Madá!”, dizia o Primeiro, passando levemente a mão nas pernas da moça. Beijaram-se rapidamente, até que a mulher dirigiu-se à cozinha, virando os olhos para seu parceiro da noite.
 
“O que tem aí na taça?”, ele cheirou, “Não posso! É meu estômago. Ele rejeita” Sentiu um incômodo desesperador na barriga. “Bebe logo!”, ela disse. “Tá louca? Uma faca?”. “Cala a boca e bebe!”.
 
Não havia alternativa. Era beber ou morrer. Quem sabe as duas coisas. Ele suava frio. À frente os olhos amedrontadores da prostituta. Abaixo um instrumento fatal que o ameaçava sem culpa. Bebeu.
A facada veio logo depois. Uma ferida no estômago que jamais seria curada. Um gemido. Um barulho de queda. Era apenas o primeiro.
 
Madá sentia uma felicidade inexplicável. Algo como a sensação de dever cumprido. Lançou no ar uma gargalhada que se ouvia na outra quadra da rua. “Menos um pecador no mundo”, dizia para si mesma, “Menos um!”.
 
Sentia-se no caminho certo e disposta a continuar. Era sua missão na Terra. Uma tarefa divina, um favor a Deus.
 
O Primeiro foi enterrado durante a madrugada daquele dia, ao lado da igreja. O Segundo jogado no mar, tornando vermelho o fluido salgado da imensidão do planeta. O Terceiro em um rio, terminando de manchar, assim, as águas. O Quarto foi tomado pelo poder do fogo e suas cinzas espalhadas pela cidade. O Quinto morreu no hospital, mordendo a língua de tanta dor. A guerra fazia progresso.
 
Já era noite quando Madá abriu a porta para o padre. “Mandou me chamar?”, perguntou ele com a voz trêmula. “Se quiser uma confissão é melhor ir até a igreja”. Ela nada respondia, apenas olhava-o profundamente dentro dos olhos.
 
“Escuta. Se é pelo que aconteceu naquela tarde, por favor, não quero lembranças. Deus sabe o quanto eu me arrependo. Já me castiguei o suficiente.”. O silêncio que continuava deixou o sacerdote ainda mais nervoso.
 
Estava claro o sofrimento do homem em sua face toda espremida, tinha os dentes presos e as mãos inquietas. Era deprimente continuar ali, e por um momento pensou que acabaria com aquilo, “Bom, se você não vai dizer nada, eu...”
 
Foi interrompido por um barulho que vinha do armário do quarto. “Quem está ali?” Tentou abrir sem sucesso. “Onde está a chave?” Ela nada disse. O homem aproximou-se violentamente  e perguntou de novo. “Em cima da mesa”, ela respondeu sem mudar a expressão sombria.
 
Abriu o armário tremendo. Que segredos guardaria aquela mulher, a razão de sua tortura diária?
 
Caiu no chão o Sexto. Com uma taça vazia presa no pescoço, pedia por água, buscando as míseras forças que ainda tinha. Foi a última coisa que pediu na vida.
 
O desespero do padre cresceu. Seus olhos ficaram vermelhos e sentia todo o corpo tremer. “Assassina!”, gritava. Ela continuava em silêncio, olhando para ele, que agora molhava seu rosto com a água dos olhos. Teve vontade de agredi-la.
 
Madá foi até a cozinha e trouxe uma taça com água para o sacerdote. “Bebe isso. Você precisa se acalmar.” A vontade que ele tinha era de quebrar a taça na face da moça. “Bebe e senta ali na cama, preciso falar com você.”
 
Era tudo uma grande loucura, mas ele precisava saber o que ela tinha a dizer. Então obedeceu.
A moça andava de um lado para o outro, mas parecia calma. O desespero estava todo na cama com o padre, que já não agüentava mais aquela situação.
 
“Eu fiz isso por causa Dele”, disse ela olhando para cima. “Para Ele”. O padre não podia suportar aquilo. “Pára! Eu não quero ouvir essas tolices. Diga logo porque me chamou, que eu já não quero mais ficar aqui.”
 
Então ela mirou nos olhos dele ainda mais profundamente que antes e começou a despir-se. O padre sabia que não devia ver aquilo, deveria sair correndo daquele lugar que exalava pecado, mas algo o prendia naquela cama. Talvez o olhar de Madá. Talvez o desejo.
 
Ela aproximou-se devagar, toda nua, pegou na mão dele e a trouxe para junto do ventre. “Deus colocou vida aqui dentro. É seu! Só pode ser seu. De um homem dos Dele. É seu!”
 
O padre estremeceu. “Não! Não é meu! É do demônio!”. Ele gritou, levantando-se da cama, tomado pela ira. Depois abaixou seu corpo sofrendo até sentar-se no chão
 
Sentiu-se sozinho no meio do universo. Só existiam ele e seu sofrimento. Levou a cabeça até os joelhos e começou a chorar desesperadamente.
 
Quase nem percebeu quando foi atingido nas costas pela faca de Madá. A dor que já sentia era muito maior que a própria morte. Pegou a imagem de Cristo que trazia com ele e começou a rezar. A única coisa que podia fazer naquele momento. Era, ele, o Sétimo.

***

O frio daquela noite não incomoda o corpo nu de Madalena, que agora põe-se a ler o livro preto que encontrou ao lado do espelho.
 
Salga os olhos. O pavor e a culpa brotam em seu rosto antes sereno e calmo. O mar de lágrimas lava sua pele arrepiada. Levanta e começa a gritar desenfreadamente as palavras do livro:

“As águas que vês, em que está sentada a prostitua, são os povos e as multidões, as nações e as línguas. Os dez chifres que vês, e a besta, odiarão a prostituta e a deixarão desolada e nua e lhe comerão as carnes e a consumirão no fogo. Porque Deus lhes pôs na mente pôr em execução o seu plano e, de comum acordo, dar à besta a soberania até que se cumpram as palavras de Deus. E a mulher que viste é a cidade que tem a soberania sobre os reis da Terra.”

Vai até o espelho e pode ver-se vestida de púrpura e escarlate, cheia de ouro, pedras preciosas e pérolas. De repente nua outra vez, desolada. Está de frente ao próprio rosto esboçando um sofrimento demoníaco.

Quebra o espelho com as próprias mãos e lança um grito sofrido. É seu corpo partido, é seu horror destruído e largado aos pedaços. Só restava a realidade. A última lágrima sai de seus olhos. Ela olha pra cima. Curva-se para pegar um dos pedaços de vidro no chão. Fere o próprio ventre. Um gemido.

Vinícius Salomão Branquinho

Rua Quinze B, número 765

Uma mente sã não poderia articular as (se é que se pode usar essa palavra) façanhas que doutor Javier realizou. Um teatro de fantoches, um jogo psicológico muito bem montado. Jogo de influências, jogo de vida e morte.Talvez seja necessário começar o relato com o histórico de nosso personagem principal.

Formado em psicologia, aluno sempre aplicado, freqüentador das melhores notas, introspectivo, sem muitos amigos, observador. Bonito, dono de um andar charmoso e seguro, quando jovem teve uma ou duas namoradas que não duraram, e repelia qualquer outro contato de outras moças que por ele se interessavam. Emendou, na mesma instituição, em que se graduou, mestrado na graduação, doutorado no mestrado e pós doutorado no doutorado, ocupando logo em seguida o cargo de docente e pesquisador.

Entre a sociedade acadêmica de psicologia e psiquiatria, seu titulo de doutor era proferido com ironia. Todos desprezavam seus objetos de estudo: as relações professor/aluno e as possíveis relações de dominação e influência aí existentes. Nenhum professor sentia-se confortável com eventuais trabalhos acadêmicos analíticos que os incluía, que os espetava. E o constante isolamento de Javier, junto com uma velada predileção da direção – deveras estranha e suspeita – por sua pessoa aumentava ainda mais o desprezo e desagrado de seus colegas.

Na sua vida pessoal adulta, nada era diferente. Afastara o máximo possível sua mãe, já velha, e sequer sabia se seu irmão mais novo ainda era vivo. Dos colegas de faculdade, esquecera o nome de todos e não fazia esforço algum para lembrá-los.  Continuava repelindo proximidade das mulheres, fossem alunas em busca de nota ou colegas de profissão que cobiçassem ter uma análise mais profunda do bonitão misterioso de andar altivo e seguro.

Sua verdadeira paixão era observar as pessoas. Sempre um poço de auto-controle , enquanto frio fora da sala de atendimentos era solícito e quase carinhoso com os pacientes que se confiavam às suas mãos, todos necessários como objetos de estudo e exemplos para teses e teorias, sendo, de outra forma, descartáveis. Mantinha com seus alunos apenas o contato acadêmico usual, porém procurava ser simpático ou permissivo, sempre estendendo prazos e sendo generoso em notas. A grande parte de seus alunos – ansiosos por se formar – eram inteligentes o suficiente para ouvir suas palavras e ler suas teorias escondendo o escárnio pelo professor em questão, que já lhes tinha sido incutido pelas mãos e vozes habilidosas do restante do corpo docente. Javier, como orgulhoso que era, ávido por reconhecimento e respeito, poder e posses, respondia às pessoas que o hostilizavam sutilmente com arrogância e fuga. Eventualmente um ou outro aluno, sempre daqueles mais quietos, misteriosos, que a um exame mais minucioso talvez revelassem um brilho obsessivo no olhar, interessavam-se mais a fundo por doutor Javier e suas teorias.

Ele aparentava estar acima de todas as relações mundanas e do julgamento que seus colegas faziam dele. Mas o que ninguém sabia de fato era que o doutor nutria profundo desgosto humilhado, que fermentado desde seus tempos de faculdade, transformara-se em puro ódio obsessivo, sedento de fatos e experiências que pudessem provar sua teoria e assim pudesse saciar sua sede de vingança, esfregando prêmios de psicologia na cara de seus “colegas”.

Fruto de seus estudos e de uma mente provavelmente perturbada – ninguém jamais saberá – ele criou um teatro de fantoches. Preparou cuidadosamente o cenário: Um galpão na rua quinze B, número 765, num bairro afastado, paredes escuras, iluminação indireta e toques de crueldade clichê: cortinas vermelhas, cadeiras que poderiam passar por tronos e diversas câmeras gravando o ambiente em tempo integral, como se faz a cobaias em um estudo. Seus bonecos: a princípio um aluno vulnerável, e posteriormente, mentes perturbadas da região toda. As cordas que o permitiam ter o controle sobre seus bonecos: o conhecimento da alma humana (há quem chame isso de psicologia) e seus medos mais profundos e suas palavras bem articuladas.

Nada ele deixou escrito, nenhum arquivo que a polícia pudesse rastrear, nenhum e-mail disparado de suas diversas contas, nenhum indício que seus colegas de faculdade pudesse tirar sarro de, ou mesmo achar suspeito. Tudo foi feito com cuidado e esmero. Era para ser, obviamente um plano infalível, exceto pelo final. E talvez até o tenha sido.

O começo se deu com um aluno com quem se identificou. Magrelo, branquelo, excluído, isolado, esforçado, mas não inteligente, talvez um pouco mais interessado pelo professor do que argumentos acadêmicos poderiam justificar. Paira a dúvida se a possibilidade surgiu do primeiro contato feito pelo aluno, ou se já existia por parte do doutor alguma intenção à espera apenas de um alguém vulnerável, sedento de atenção e carinho que pudesse comprar suas idéias. Marlon não sabia porque cursava psicologia. Não sabia porque não gostava de meninas. Não sabia porque sua mãe o havia abandonado, não sabia porque seu pai bebia, não sabia porque tinha apanhado desde a segunda série ao terceiro colegial, não sabia porque o doutor exercia tamanho fascínio sobre seu corpo e sua mente. Não sabia, mas tudo acontecia.

Sendo assim, uma tarde, após a aula, fingindo interesse nas teorias sempre rejeitadas de Y, Marlon gastou um tempinho a mais para guardar suas coisas, enquanto a sala rapidamente se esvaziava. As câmeras de segurança do campus não captaram as vozes. Mas o aluno aproximou-se do professor e poucas palavras constrangidas foram trocadas, ficando o estudante sozinho na sala após poucos segundos. Uma proposta indecente, talvez, um professor surpreendido, uma reação impensada, talvez. Tudo se infere, nada se confirma.

O fato é que exatamente uma semana depois, após a mesma aula, Marlon fez menção de ter a reação oposta a que tivera anteriormente e sair rapidamente. E foi a vez dele se surpreender. Javier não esperou que a sala se esvaziasse – nenhum aluno sequer olhava para ele ou o cumprimentava ao ir embora – caminhou até Marlon e, supõe-se, chamou-o a sua sala. Mestre e discípulo saíram juntos do recinto e caminharam ombro a ombro, um imponente, outro tímido. Até uma das melhores salas de professores da faculdade. O que se passou ali ninguém, além dos livros nas estantes e dos sofás de couro, tapetes persa e todo o resto da rica decoração, sabe. Mas algo foi falado, algo foi ouvido, um convite foi feito e lançando mão de alguma persuasão, sábado encontraram-se os dois no galpão da rua quinze, numero 765.

Tendo chagado antes, as câmeras registraram todo o preparo e esmero que Javier empregou no ambiente. Posicionou uma cadeira de espaldar reto e alto e estofado vermelho no centro do palco, acendeu drogas de cheiro doce e efeito  alucinógeno  em recipientes estrategicamente espalhados pelas paredes, afim de atingir todo o ambiente. Poderia-se dizer, pelo tamanho do ambiente e pelo cuidado, que duzentas pessoas estariam ali ouvindo uma palestra importante ou cultuando algo obscuro.

Mas não naquela noite. Aquela noite era especial. Era a primeira. Era o começo. O nervosismo do professor o denunciava, mão trêmulas, andar impaciente. Mas assim que Marlon entrou pelas portas duplas, ombros encurvados, medroso, porem com expectativa e excitação no olhar, Javier mudou. Suas feições adquiriram um ar superior, porem compreensivo, quase paternal, pronto para suprir as necessidades que ele sabia que sua cobaia tinha. Naquela noite, as paredes e os lampiões testemunharam poucas palavras, quatro mãos, quatro pés e dois corpos em rituais simbólicos e sodômicos. Uma instituição de hierarquia apaixonada e dominação má intencionada e mascarada.

O contato de Marlon e o professor na faculdade foi reduzido a zero nas semanas posteriores. E duas semanas após aquele encontro, ninguém desconfiava, talvez porque ninguém tivesse notado, que a súbita mudança de postura de Marlon – ombros eretos, meios sorrisos enigmáticos – tinha algo a ver com um caixa, cujo esconderijo era os fundos de sua gaveta em seu quarto, que guardava mechas de cabelo, preservativos, tocos de velas pretas e memórias de um passeio com Javier em uma noite morna que ferveu seu coração carente.

Já se havia passado dois meses do primeiro encontro e Marlon continuava indo ao numero 765 da rua quinze todo sábado. Graças aos contatos do rapaz em jogos RPG online, o público do “mestre” Javier aumentara de um para cinco jovens. Todos usavam seus próprios nomes, todos tinham chances de falar, a todos era permitido ser quem realmente eram. Comunicativos ou não, dark, brega, esquisitos, gordos, magros. Javier cuidava para massagear o ego de todos eles, lhes dava liberdade o suficiente para opinar, para expressarem todo – todo mesmo – tipo de reação e sentimento que quisessem, sem jamais perder o controle da tênue linha que separava um grupo com um líder inspirador de uma anarquia. Havia regras, nunca explícitas, sempre claras e absolutas: confidencialidade, lealdade, disfarce fora dos encontros.

O que os pequenos crentes jovens não sabiam, pobres coitados, era que suas mentes estavam cuidadosa e sutilmente sendo lavadas e adaptadas por seu venerado mestre. Javier sabia bem demais em que pontos tocar, o que falar, o que fazer para conquistar e influenciar cada um que se apresentasse a ele. Suas verdadeiras intenções, porem, seus seguidores jamais saberiam. Ele queria provar, a princípio, suas teorias acadêmicas e emergir na sociedade da psicologia. Mas algo talvez tenha crescido em seu coração, em seu ego. O reconhecimento que jamais tivera. Poder real sobre as pessoas, influência plena, como sua teoria propunha. E sua brincadeira, como uma mentira contada muitas vezes, saiu do plano da pesquisa acadêmica irresponsável para o plano real. Passava cada vez menos tempo em sua sala na faculdade, seu jardim deixara de ter o gramado aparado e a casa agora apresentava irregularidades na fachada outrora perfeitamente cuidada. As gravações das câmeras instaladas no galpão da rua 15, número 765 revelavam agora um Javier com vincos de preocupação entre as sobrancelhas, bolsas sob os olhos: fruto de noites em claro escrevendo discursos, cartas e tratados, que eram cuidadosamente queimados após cada reunião do grupo, junto com outros objetos macabros, como peles de animais, dvds, cds, roupas.

Já era pelo sexto mês de encontro do grupo, agora com quinze participantes, quando a primeira demonstração de lealdade foi proposta por Javier. É certo que seu público tinha já alguma inclinação ao macabro e sombrio. É certo também que o professor, em acessos de poder e demência, vislumbrou uma chance imperdível de provar à sociedade a veracidade de suas teorias e o poder a ele conferido através da aplicação das mesmas. A sua vontade era direcionar suas ações a seus “algozes” e assustar os membros da sociedade acadêmica. Mas suas faculdades mentais lógicas ainda estavam em perfeito, senão em melhor estado, e uma eventual investigação levaria a polícia a ele com a colaboração do desagrado de seus colegas e sem muito esforço.

Depois de três noites sem dormir, duas faltas na faculdade justificadas com uma gripe inventada e refeições malfeitas, no encontro de sábado, Javier escolheu cinco dos seus. Marlon, seu sublíder, três dos mais antigos e um dedicado “servo” dos mais novos. Levou-os, ao fim do culto para a saleta atrás do palco, território restrito aos jovens anteriormente e os confiou a missão. A principio, deu coordenadas exatas. Era necessário induzi-los a pensar a lógica dos fatos, ensiná-los a pensar com malicia e realizar auto-analise dos fatos antes que estes ocorressem, evitando erros.

No dia seguinte, uma pequena nota na página de obituários do jornal anunciava a morte de um mendigo que vivia por perto da rua quinze. Sua morte por carbonização foi atribuída a uma lata de álcool, um palito de fósforo e uma ponta de cobertor sacudida pelo vento. Mas o que a polícia não sabia era que havia um Marlon e alguns amigos eufóricos com um passeio que haviam dado na noite anterior. E que a caixinha de “importantes” de Marlon, no fundo da gaveta, continha agora meia garrafa de álcool e um canivete.

Javier havia começado a provar sua teoria. Influenciara rapazes que sequer conhecia a cometer um crime. E os deixara com a consciência tranqüila o suficiente para acreditar que haviam feito um favor ao mendigo. Os conceitos de certo e errado, o que havia de mais intrínseco à vida de uma pessoa, de mais imutável estava nas suas mãos. E sem muito esforço, apenas paciência. Mas ele ainda não poderia provar nada assim. Era preciso algo maior. Recrutar mais gente. Mais seguidores.

Foi quando o doutor saiu do controle. Se é que ainda existia nele algum. Sua mente doentia já ruía seu auto-controle. Seu andar perdera o charme, seus pacientes não mais recebiam ligações cancelando consultas, as notas de fim de semestre já estavam atrasadas há semanas. Suas roupas – fora as roupas dos cultos, que começavam a adquirir tons vermelhos e dourados – andavam em desalinho e a maioria de seus pertences pessoais essenciais encontravam-se na salinha dos fundos do galpão da rua quinze, número 765.

Seus seguidores estavam apaixonados. Não pelo homem Javier, mas pelo que eram quando estavam naquele grupo. Por como podiam ser eles mesmos nos seus instintos mais lascivos e cruéis e até mesmo bobos. Por como se respeitavam mutuamente. Mas Marlon, o escolhido número um, foi o primeiro a notar e se incomodar com as mudanças de seu mestre.  A sua atenção exclusiva estava sendo reduzida drasticamente, o mestre estava aéreo nos momentos fora do culto. Ninguém mais de seus companheiros parecia notar, ou se notavam, não se importavam.

O mundo nunca foi horrorizado pelas palavras do doutor que inspiraram seus pupilos numa noite muito fria de junho: as câmeras de segurança nunca têm som. Mas os dezessete presentes naquele galpão outrora cuidadosamente preparado vibraram, acreditaram, ficaram cegos. E saíram naquela noite, divididos em dois grupos, prontos para aliciar pelo menos mais duas pessoas. E a missão deles era complexamente simples: fazer com algum outro ser humano a mesma coisa que Javier havia feito com eles. Ou seja, gerar motivação para juntar-se ao grupo, porém de forma muito mais desagradável. O troco que o doutor daria à sociedade pelas mãos de seus pupilos.

Então, com Marlon liderando um grupo e o (ex) novato dedicado liderando outro, partiram para bairros opostos da cidade, munidos de diferentes aparatos. O grupo um carregava latas de gasolina e um isqueiro. O grupo dois, garrafas, facas e punhos sedentos.

A página policial do jornal da manhã seguinte trazia em letras garrafais um crime hediondo. Uma família, numa casa simples inteira dizimada. Mãe e filha estupradas. Pai torturado, provavelmente assistira também à tortura da família. Cortes, olhos furados, pele queimada, espancamento. E um filho de 14 anos suspeito de participar do crime – desaparecido.  Não é necessário dizer para onde ele fora levado em estado de choque para começar a ter sua visão de mundo mudada. A página dos obituários novamente trazia um incêndio, desta vez numa casa qualquer de um bairro qualquer com todos os mortos que havia na casa. Menos a filha adotiva, que fora milagrosamente salva por um grupo de jovens simpáticos que passava por ali, segundo uma vizinha.

E dali duas semanas, mais um crime e um acidente. Um vazamento de gás, com mãe e neném mortos em seus leitos, mas um pai jovem que dormiu no escritório com a porta fechada e a janela aberta, provavelmente sumido no mundo consumindo-se em culpa. E uma gang que começava a assustar e ser nomeada com nomes ridículos como a mídia adora fazer. Os mesmos traços de violência gratuita – mas eles sabiam que não era, havia motivos, havia princípios, havia necessidade de aumentar o grupo! – e uma ex-mulher que sumira misteriosamente.

Marlon participava de tudo aquilo e assistia o grupo do (ex) novato dedicado cometer as maiores crueldades de mãos atadas e indignado. Seu grupo o pressionava a adotar as mesmas táticas, ávidos por liberar seus instintos, e eram indiretamente encorajados por um Javier de olhar louco, satisfeito, que esquecera de suas teses e teorias e via seu rebanho de súditos crescer a cada dia. Considerava comprar-se uma coroa. Ele merecia, afinal. Mas seu primeiro recrutado parecia disposto a causar-lhe problemas. Após um culto de quarta-feira (eram agora diários) invadiu os aposentos atrás do palco. E a falta dos microfones das câmeras novamente evitaram que o mundo ouvisse as palavras quase racionais do discípulo para o mestre, tentando demove-lo. Afinal, libertar-se, sentir-se bem, ser quem e o que se quer, a causa, o grupo, nada disso incluía outras pessoas sentirem dor. Matá-las sem dor, dopá-las antes do fogo, antes da asfixia, porque não? A morte viria de qualquer jeito, mas poderia ser sem dor. Mas também o estardalhaço da mídia seria menor.  O doutor, porém estava irredutível. E mais magro. E com olhos fundos e roxos. E quase babava. Houve um silencio na conversa, argumentações cessaram. O coração de Marlon havia amolecido. Javier, seu querido Javier precisava de sua ajuda, precisava de cuidados do seu primeiro aluno, de seu primeiro parceiro na empreitada. E assim tentou fazer.

Na semana seguinte à briga, no entanto, o esquema de recrutamento foi alterado. Marlon foi transferido, sem autoridade alguma para baixo do comando do (ex) novato dedicado e uma moça dedicadíssima, que passara a freqüentar muito os aposentos de trás do palco ultimamente, preencheu a vaga de líder do primeiro grupo. E que não houvesse questionamentos, que nenhuma boca se abrisse, eram decisões do mestre. E liberdade de expressão não mais havia. E o grupo já tinha trinta e poucas pessoas. E já havia gente de quem nem se sabia o nome. E aquela noite seria determinante para o futuro daquelas vítimas de um louco.

O grupo da moça que freqüentava os aposentos de trás do palco inovou e as páginas dos jornais do dia seguinte – já haviam atingido jornais nacionais, as gangues da pequena cidade – trouxeram a hipótese de uma nova gangue, rival a anterior, quem sabe?.. que matava enforcando e asfixiando. Seus alvos da vez? Professoras e alunos de uma escolinha em uma inocente noite de festa do pijama. Três crianças desaparecidas. Mas estranhamente, aquele foi o único crime das páginas policias daquele dia. E não houve incêndios, não houve vazamento de gás ou algo que indicasse a atividade de algum outro grupo criminoso. E nem Marlon e nem o (ex) novato dedicado apareceram no galpão da rua quinze, número 765 naquela noite. Pelo menos não que alguém tivesse visto. Javier sequer deu importância ao fato. E a iniciação dos novatos foi começada, como de costume, com os chás de sempre, as musicas e as capas vermelhas. Naquela noite, o primeiro dos recrutas testemunhou de um esconderijo conveniente no telhado, sóbrio e trêmulo, sentido dores como não sentia em muito tempo, seu querido Javier exortar seus discípulos. Presenciou a loucura da qual fez parte por tanto tempo. Chegou a murmurar consigo mesmo algumas das batidas e ritmos e sentiu falta de quando criavam as musicas. De quando eram só seis rapazes com problemas em fazer amigos. E tinha a atenção e o carinho de Javier. 

Sua decisão foi então tomada. As outras pessoas não tinham mais que sofrer. E só ele poderia colocar fim àquilo tudo. E estava decidido. E sóbrio. E trêmulo. E em dor. E não conseguia pensar direito. A auto-analise, a auto-analise, nada poderia dar errado, mas era difícil pensar. O melhor seria esperar, quieto, perto da entrada, onde poderia ver quando todos saíssem. Não poderia acabar com todos eles, nem todos eram culpados. E não teria forças para enterrá-los. Quase morrera em um acesso de asma ao cavar a sepultura do ex vivo (ex) novato dedicado; afinal ainda era magrelo. Curvou-se então, em algumas sombras perto da saída do santuário. Se as câmeras de segurança tivessem som, é certo que o coração dele poderia ser ouvido nas gravações, tão alto batia. Saíram aos poucos, discretos. Contou-os com dificuldade. Faltava um. Esperou. Faltava um. Esperou. Recontou mentalmente. E lembrou quem faltava. Ela. Ele sabia onde ela estava. Era a hora.

Marlon arrastou-se para dentro do salão indo direto para o depósito, tentando fazer o menor barulho possível. As coisas tinham que entrar em foco, a auto-análise, a auto-análise. Precisava conseguir pensar. Só um pouco, para pensar. E cinco minutos depois de chegar ao depósito, tinha um plano claro em mente. E um pé de cabra. E uma garrafa quebrada. E fúria e inveja e ódio. Dirigiu-se para os aposentos atrás do palco. Parado atrás da porta, ele podia ouvir os gemidos. Podia cheirar o que um dia fora seu. E não pode mais esperar, o sangue zunindo em seus ouvidos, o ódio e as lágrimas turvando-lhe a visão.

Ela foi arrancada de cima do doutor com uma rápida e extremamente forte garrafada na têmpora. Marlon viu os olhos do doutor, exposto em sua nudez, cru, sem roupas vermelhas, sem artifícios, indefeso. E com medo. E já não parecia tão inspirador. Balbuciava, sentido próximo seu destino. E sentindo uma dor lancinante no estômago ao ser atingido pela primeira vez no estômago. Teve sorte de ter sido atingido pela segunda vez na cabeça; seu corpo continuaria vivo por ainda cerca de meia hora, tendo costelas quebradas, pulmões perfurados, traumas no crânio e órgãos dilacerados. Mas ele já não mais sentia. E Marlon deu seguimento a seu plano.

Ela, nua, sangue escorrido por todo o corpo, foi suspensa pelo pescoço sobre o palco, logo acima do trono. Mais uma passada no deposito, uma arma. E a mensagem de texto que convocaria o grupo todo para uma reunião de emergência, enviada do celular de Javier. Esperou fora do galpão. Aos poucos, foram voltando seus companheiros, um a um. Acumulou-os todos fora do galpão “seguindo ordens”. Tendo chegado quase o grupo todo, ignorando alguns murmúrios curiosos, deixou que  entrassem, trancou a porta. Ordenou que tomassem seus lugares. Identificou as quatro principais lideranças do grupo, gravou seus lugares na mente e foi para trás das cortinas. Sentiu, subitamente, o cheiro metálico de sangue que saía dos aposentos atrás do palco e vacilou. Era o sangue de Javier, seu Javier. E quase pensou em passar no depósito novamente, se encher de um pouco mais de coragem. Mas não havia tempo. Abriu as cortinas. Deliciou-se ao ouvir gritos e cadeiras se movendo. Surgiu no palco.

A câmeras continuavam sem som mas as palavras dele eram quase audíveis. O que ele fez com ela. Porque ela se rebelou. Porque ela não quis cumprir uma ordem. Onde estava a liberdade. Onde estava todo o prometido. E o efeito que ia passando, e seu raciocínio que ia ficando bagunçado. E não eram assassinos, no que tinham se tornado, ele havia fugido, estavam órfãos, não, não queria tomar o controle, não sabia de nada, não havia, sim tinha sido a mensagem dele, como do celular do mestre não sei é que eu cheguei ela morta eu tava lá eu num sabia eu eu eu CHEGA!

E atirou. Quatro vezes. Errou duas. Acertou em um alvo planejado e em outro que não estava na lista. E aconteceu o que esperava, o que precisava, o que sabia. Viu as sombras, os vultos, os monstros lhe alcançarem. Sequer correu, apenas desejou ter passado no depósito, ajudaria a não sentir. E desejou que os primeiros golpes fossem desferidos na cabeça, para parar de sentir logo. Logicamente, seu desejo não foi atendido. Teve sorte, porém, de conseguir ver, antes do sangue bloquear sua visão, que alguns – a maioria dos mais novos que caíam em si começavam a discutir e brigar e socar e fazer o que faziam de melhor dentro do santuário, uns contra os outros, dentro do galpão outrora cuidadosamente decorado. Eles se destruiriam. Tomara. Apagou.

A página policial dos jornais – rede nacional – do dia seguinte, surpreendentemente já tinha detalhes da “briga de gangues” rivais da madrugada anterior que havia deixado mais de vinte mortos e alguns feridos no galpão da rua quinze, numero 765. Três dias depois, uma manchete no jornal da cidade noticiava que um corpo fora achado no terreno do galpão da rua quinze. E naquele ano, exceto por uma apreensão ou outra de tráfico de drogas, as páginas policiais dos jornais da cidade mantiveram-se de luzes apagadas.

Pena que não se possa dizer o mesmo das páginas policias dos jornais de alcance nacional...

Amanda Ágata Contieri / Gabriela Ferraz Granja / Juliana A. L. Torquato / Karina Ciotto dos Santos

Da natureza das coisas

A senhora descia a rua com seu passinho curto e rápido. O guarda-chuva a protegia do sol do meio dia que castigava o asfalto. Subindo, no final da rua, via-se um ônibus. A senhorinha descendo e o ônibus subindo. Quanto mais o veículo se aproximava, mais nítidas ficavam as grandes manchas vermelhas na frente do ônibus. Então a senhorinha percebeu que não havia motorista. E o ônibus continuava a se aproximar, em alta velocidade; passou pela senhora e ela pôde ver que não só a frente do ônibus estava manchada de vermelho como os passageiros também estavam. Alguns, com a cabeça pendida para trás. Outros, dependurados nas barras do teto do ônibus. A senhorinha não conseguia entender o que estava acontecendo. Virou-se, enquanto o ônibus a ultrapassava. Quando o veículo chegou ao final da rua, lá em cima, virou-se e voltou a descê-la. Com maior velocidade. Se aproximando da senhorinha. Cada vez mais rápido. Ela então percebeu e começou a caminhar com um passo cada vez mais rápido. O ônibus a alcançou. Atingiu a idosa, comprimindo-a contra um dos muros da rua. Então, o ônibus sem motorista deu a ré, agora mais sujo de sangue, e subiu a rua novamente, se dirigindo ao centro da cidade. O corpo irreconhecível da senhorinha mergulhava em uma grande poça de sangue que o sol castigava e tratava de secar.
 
O pai levava os filhos para a escola em seu carro novo. O cheiro do estofado recém fabricado inebriava os passageiros. A facilidade da direção impressionava o pai. Os filhos estavam entretidos pelo filme que passava no aparelho de DVD. O pai, em seu caminho habitual, percebeu que o trânsito do centro não estava tão cotidiano: vários carros parados. Ao longe se via uma fumaça preta subindo. O pai tentou dar ré, mas viu que já havia outro motorista lhe impedindo. Resignou-se, então; estava no carro novo. No acostamento, um ônibus intensamente manchado de algo vermelho passa em alta velocidade. O pai mal tem tempo de cogitar que as manchas são de sangue quando o encosto do banco de seu carro novo rapidamente vai pra frente. O pai bate a cabeça no volante. O sangue começa a escorrer pelo cheiroso estofado. As crianças começam a se desesperar, mas os fones de ouvido que usam para assistir ao filme solta uma intensa descarga elétrica. Na mesma rodovia, os motoristas começam a sofrer com fumaça dentro do veículo e portas que não se abrem. Acendedores de cigarro que incendeiam. Cintos de segurança que enforcam. A fumaça preta que se via ao longe fica cada vez mais espessa e próxima. Gritos se fazem ouvir.
 
A professora fazia a chamada e percebia que algumas crianças haviam faltado. As crianças presentes pediam que ligasse os ventiladores; apesar de estarem dentro da sala, o sol aquecia o ambiente. A professora apertou o botão e os ventiladores não se moveram. Apertou novamente. Nada. Outra vez. Nenhum vento. Apertou pela última vez e os aparelhos continuavam estáticos. Disse às crianças que parecia estarem quebrados, mas o calor logo passaria. Enquanto começava a corrigir a lição da aula anterior, os ventiladores, que pendiam do teto, começavam a funcionar. O refrescante vento rodopiava pela sala, aliviando o desconforto. As crianças sorriram. A professora continuou a corrigir, com os olhos voltados para o livro. Somente quando pediu que um aluno lesse sua resposta e levantou os olhos que viu que os ventiladores desciam do teto, ligados, pendurados pelos fios elétricos. A professora gritou ao mesmo tempo em que as hélices desceram rapidamente, ainda funcionando. Nenhum aluno conseguiu desviar. A professora foi atingida pelo sangue quente que espirrava. Em choque, correu para a porta. Os ventiladores funcionavam e subiam calmamente para o teto, pingando o sangue que já inundava a sala e refrescando o ambiente.

A professora saiu da sala e começou a correr pelos corredores da escola. Entrou em uma sala e viu ali que os ventiladores também haviam descido do teto, atingindo o professor, além dos alunos. Nas outras salas, nem precisou entrar. O sangue escorria pelos vãos das portas. Atordoada, ela foi para a sala dos professores. A tela do monitor do computador havia estilhaçado e atingido dois professores. A máquina de café parecia ter jorrado líquido fervente em outros, cuja pele parecia líquida. Um dos atingidos pelo café fervente se mexia. A professora ia em sua direção quando a máquina de café jorrou mais água fervente. O corpo mal emitiu um som e parou de se mover. A professora correu para fora da escola. Havia corpos e sangue por todos os lados: dentro dos carros, em cima deles. Na esquina da escola, um ônibus escolar cheio de alunos ensangüentados. A professora correu. Não sabia para onde, mas correu.
 
Sob o viaduto, escondido dos olhares de todos, um mendigo dormia até que começou a ouvir gritos e barulhos estridentes. Olhou para as avenidas que passavam sob o viaduto e viu carros incendiados, corpos ensanguentados no interior dos veículos. O que está acontecendo? Bebi muito outra vez. Mas não tinha dinheiro pra comprar bebida. Estou sóbrio e acordado. O mendigo saiu de seu esconderijo e sorrateiramente escapou das avenidas. Olhando de esguelha para trás, sua atenção se voltou para os inúmeros pontos de comércio existentes em seu caminho. Viu as fritadeiras das pastelarias que continuamente despejavam óleo fervendo nos corpos esparramados. Os bancos com as portas de vidro fechadas e milhões de notas abarrotando seus interiores. Em um café, com as portas também fechadas, um homem esmurrava o vidro que parecia inquebrável. Do lado de fora, o mendigo ouvia o som ensurdecedor que tocava dentro do estabelecimento. Tentou abrir a porta, mas não conseguia. O homem lá dentro se desesperava. Os murros ficavam cada vez mais fracos. O sangue começou a escorrer pelos ouvidos e pelo nariz. O homem tombou e o mendigo começou a correr. Não sabia para onde, mas correu. O sol já não fustigava a cidade, começava a se recolher.
 
O mendigo correu para uma espécie de bosque que ainda existia em um dos bairros altos da cidade. Não sabia o que havia lhe feito ir até ali, mas lá encontrou mais algumas pessoas. Uma mulher ensangüentada dizia que em sua escola, todos os alunos foram mortos pelos ventiladores. Outros diziam que os carros começaram a se mexer sem razão aparente. Chuveiros desregulados que jorravam água escaldante. Fogões que soltavam gás ou então se incendiavam. Televisões que cegavam, ensurdeciam e explodiam. Ônibus sem motoristas que atropelavam pedestres.

Ninguém entendia. Não era mau funcionamento. Não era problema da rede elétrica. Os equipamentos e aparelhos agiam sozinhos. Via-se, ao longe, o sol se pondo e o centro da cidade em fogo puro e fumaça. Ouviam-se pneus de carros cantando, estalos da rede elétrica. Não se ouviam vozes ou gritos.
As poucas pessoas que estavam no bosque se deitaram no chão, próximos às raízes das grandes árvores. Conseguiram adormecer, apesar do dia que tiveram. Durante a madrugada, mais gritos. A professora e o mendigo, que adormeceram próximos um do outro, acordaram sobressaltados. A pouca claridade da lua deixava ver pouca coisa. Não viam as raízes das grandes árvores puxando as pessoas para baixo. Não viam os galhos perfurando gargantas. Na verdade, só perceberam o que se passava quando foram puxados para baixo e estrangulados pelas raízes fortes.

Ao longe, o fogo continuava a consumir a cidade e secar o sangue que fora derramado. Ensangüentado estava agora também o solo do bosque. Encharcado. Nutritivo.

Rômulo Silva

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Vigília

Campinas, 2010

     “Não!”. O que pretendia ser um grito foi menos que um sussurro. Acordou irritado, o relógio marcando noite na cabeceira, a blusa de frio pendurada na cadeira parecendo pessoa, esfregando-lhe no rosto o vazio do quarto. Respirava fundo e, enquanto retomava o fôlego, fingia que o costume tinha ganhado do medo, mas ainda precisaria de muitos pesadelos como aquele pra se habituar a ponto de parar de tremer.
    O problema não era o sonho, pelo menos não enquanto estivesse de olhos abertos. Mas aquela agonia de acordar negando e não lembrar o que, de só reconhecer o silêncio que a voz não conseguia interromper, aquela lacuna na memória era o limite do insuportável. De quem era esse rosto de que ele não se lembrava mais? Sentiu o formigamento acabar pelas pontas dos dedos, os olhos já acostumados ao escuro, o pulso de volta ao seu ritmo. Quase podia dormir outra vez, quem sabe uma noite tranqüila depois de tantas semanas. Quase.
    Foi quando alguma coisa nele quebrou a reação mecânica de resmungar o travesseiro e recomeçar o drama. Deixar o tic-tac niná-lo de novo, remexer e derrubar as cobertas até ficar gelado, sonhar, acordar com o grito aprisionado e levar horas controlando todas as reações bizarras do corpo sem nenhuma explicação pra nada disso. Não, dessa vez ele faria diferente, encontraria alguma razão pra esse desespero todo e aí, quem sabe, dormiria bem enfim. Mas, se nada na sua vida medíocre mudava nunca, por onde começar? Não sabia sequer o conteúdo do sonho que o apavorava tanto, o único vestígio era sempre aquele vulto vazio, borrado na desmemória do acordar. Ia sair e procurar alguém, qualquer um que preenchesse aquele vulto, que coubesse no espaço vago. Só precisava de um rosto que justificasse a agonia e pronto, voltaria a dormir.
    Abriu a velha porta de madeira do seu pequeno quarto e o cheiro de papel antigo e poeira o invadiu, familiar. Se havia qualquer coisa a remarcar na sua vida era a moradia: um cômodo quase escondido numa grande biblioteca particular, cedido muitos anos antes por um velho bibliófilo em troca de pequenos serviços. Separada da mansão por um jardim, onde todos os outros ricos da região tinham casas da piscina, Sir Bernström tinha livros. Montes deles. Até hoje o menino – sim, ele não passava de um menino mesmo quando parecia ranzinza – não tinha muita certeza de como fora parar ali. Ponderava se já não era ele mesmo um amontoado de folhas amareladas e sem vida.
    Cinco passos pra longe da cama e lá estavam as prateleiras imensas e cheias de volumes de todos os tamanhos, metodicamente organizados: “são nossas passagens secretas”, o velho tinha lhe dito uma vez em tom sério de segredo, de mistério sagrado. Passava por ali sempre com muito respeito e cuidado, mas as sensações hoje eram outras e era como se ele não tivesse tempo a perder com rituais. Não estava se deixando pensar porque não encontraria solução e estava desesperado e cansado demais para se render ao pesadelo: ainda se fosse até o fim, se não acordasse antes da hora...
    Cambaleava pelos corredores sem arriscar-se a acender uma luz, guiado por alguma dessas loucuras que a insônia dispara e só a manhã sabe frear. E às vezes, nem ela. Escolheu pelo cheiro ou pelo impulso uma obra em cada corredor entre séculos, gêneros e línguas diversas até ver o sol ameaçar atrás das grandes janelas de vidro. Ainda não era manhã, mas já havia um pouco de claridade sobre as mesas e horas a fio ele folheou páginas e páginas das histórias mais desconexas, procurando qualquer coisa que assustasse o suficiente para fazer parar, alguma figura qualquer que ele precisasse negar.
    Quando o dia se fez ele vagueou pelas ruas, à caça de caretas e agonias, certo de que só um alguém muito feio ou uma expressão de dor violenta poderia ser colada no lugar do tal vulto e assim ele sonharia concreto e lembrado, fácil de desfazer depois. Se pudesse inventar um nome qualquer pro seu medo das madrugadas, ele viraria companhia por mais horrendo que fosse. Chegou a entrar em um ou dois hospitais, a encarar as estátuas de uma igreja, olhar o cemitério, mas nada parecia suficientemente apavorante.
    Voltava derrotado para a mansão quando cruzou com um menino bastante esquisito, de olhos atentos. Ele também parecia perdido num mundo próprio, à procura de qualquer coisa nos rostos alheios quando as duas faces se puseram em sintonia ou em transe: reconheceram-se. Depois disso, tudo foi confuso e rápido demais.
    Sem uma palavra, a corrida de volta à biblioteca parecia uma competição, uma maratona alucinada. Voltaram - ambos pálidos - com todos os livros para os seus lugares, vasculharam corredores em busca de outro objeto perdido, estavam tão perto, bem ali naquela prateleira em frente, escondido atrás da ampulheta... “Não!”
    Acordou incrédulo. Dormira no corredor, contra toda a adrenalina e a dois passos do último grão de areia e agora simplesmente não encontrava o menino em parte alguma. Revirou o cômodo, voltou ao seu pequeno quarto e sacudiu as cobertas como se o garoto tivesse se perdido dentro do sonho. Nada. De volta ao corredor da confusão, notou que a ampulheta estava virada, que alguém pusera o tempo para recomeçar. As perguntas vinham-lhe aos milhares e só agora, estatelado defronte o relógio de areia ele percebia ter procurado a criança sem nenhuma claridade. Mas a biblioteca tinha janelas enormes para receber a luz do dia.
    Dia? Há quantas semanas estaria preso naquela hora entre o fim da tarde e o começo da noite? Encontrara enfim um rosto, mas ele não assustava em nada senão pela continuação do enigma. Olhou de novo a ampulheta tão displicentemente posta bem em frente àquele amontoado de papéis amarelados que alguém amarrara em qualquer época distante; e ainda sob o peso da sala vazia ouviu, clara, a voz de menino: “Quem é você?”.
    A pergunta ecoou e por um instante ele pareceu se livrar do delírio. Levantou decidido a retirar dali a ampulheta e descobrir o que quer que houvesse nos papéis mas,  tão logo aproximou-se da prateleira, entendeu que não era o objeto que não se mexia, eram as mãos. Quando chegavam muito perto, congelavam no ar sem forças senão para descer de volta ao longo do corpo. “Quem é você?”. Estava tão preocupado em sair do pesadelo, em vencer aquela hora interminável, começar um dia de verdade para... Para que? Estivera tanto tempo suspenso no silêncio, tanto tempo calado, sem dar atenção sequer às palavras dos livros, procurando desesperadamente por figuras que esquecera o próprio nome. Quem era ele?
    A interrogação pairava pesada e o tom da voz lhe dava a certeza de que ela só podia pertencer ao menino da praça. O misterioso menino que conhecia o caminho da mansão e o lugar de cada obra entre tantas estantes, que sabia mesmo da sua importância como passagens secretas e estava ali no recomeço daquele dia eterno escancarando-lhe diante dos olhos a mais secreta das passagens sem que ele soubesse abri-la. Não podia acreditar que não soubesse o próprio nome, que o tempo estivesse outra vez pela metade e ele não conseguisse ser mais que um vulto. Imóvel, as mãos caídas sem força, os olhos desvairados percorrendo títulos de livros à procura de qualquer nome que pudesse dar a si mesmo... Aquele dia infernal começara com uma busca insone por qualquer rosto que lhe disfarçasse o medo, qualquer nome que o transformasse em riso e agora o pavor era de não ter nenhum rosto para alguém encontrar.
    Conhecera tantas pessoas, tantas personagens, deveria ter muitos nomes na ponta da língua. Era só dizer qualquer um deles, gritá-lo para calar aquela pergunta estúpida que retinia em seus ouvidos. Forçou-se a parar os olhos na ampulheta, abriu a boca e... Fechou-a novamente! Nenhum nome na memória, nenhum som na garganta.  Amarelo e sem vida como os velhos volumes em volta, ele seria uma passagem secreta pra onde se ninguém o descobrisse?                                               
    Mais uma hora ia se completando naquele tempo paralelo que o engolia a cada inspiração sem resposta quando a areia rompeu o vidro e a realidade, encheu a sala como tempestade de deserto, monstruosos grãos aglomeravam-se em volta de todo o corpo enquanto ele tentava alcançar os papéis e sentia as mãos serem tragadas pelo pó. O vidro estilhaçado ameaçando a garganta, olhos fechados de pânico e proteção, tudo no silêncio massacrante – soterrado no próprio tempo, nas próprias lembranças mudas. A areia cobria até o pescoço quando ouviu de novo o menino indagar: “Quem é você?”.
    Desesperado, quis dizer quem era independente de nome ou história, dizer qualquer coisa para não se afogar em passado e poder, quem sabe, ser alguém depois que tudo aquilo passasse. Mas a areia veio violenta preencher poros, ele não era ninguém, um vulto qualquer cujo tempo estava esgotado, um borrão que o último grão vinha calar de uma vez por todas. “Nã...” – tarde demais pra um sussurro, mas ele nunca teria voz pro grito.


    Depois que o menino partiu, crescido e idêntico ao pai, para viver no deserto distante, o filho único e em que Sir Bernström apostara todas as fichas, em quem pusera seu nome, seus sonhos, suas esperanças e metas, alguns dizem que ele enlouqueceu. Enfiado a um canto de sua grande biblioteca, primeiro ele dizia prestar serviços ao dono da casa em troca do quarto inexistente, depois as pessoas pararam de procurá-lo.

    Dizem que escreveu durante dias suas memórias, seu passado, que acumulou todas as fotografias, documentos, cartas e escondeu todo o inventário em algum vão nas prateleiras entre os livros que chamava de passagens secretas e que o segundo Gustaf Bernström jamais tivera desejo algum de abrir. Renegadas a sua companhia, os seus cuidados e seu maior tesouro, o velho bibliófilo comprou uma ampulheta e repete desde então a hora em que o perdeu de vista, em que o deixou levar embora todos os seus planos. O sonho é que antes que caia o último grão, o garoto volte com um pedido de desculpas e a alma do pai.

    Há quem acredite que emudeceu de revirar a ampulheta e reviver a angústia. Dormia no chão e seu quarto imaginário era um quadrado, a cadeira no canto, com o casaco que o garoto não quis vestir antes de ir-se embora.

Ana Luiza Rocha do Vale

22.22

Vovô sempre dizia que era irônico que as bombas tivessem explodido às 22:22 porque nessa tal de bíblia o apocalipse acaba no 22:21. Nunca entendi muito bem o que ele queria dizer. Não sei o que significa irônico e essa bíblia só vovô tinha algumas páginas dela amassadas que ele não tirava do bolso dele. Ele falava que era só o que tinha sobrado para ele desde as bombas. Do tipo H, dizia ele também, mas nunca entendi também o que queria dizer. Parece que foram várias juntas. Acabaram com o céu. Aquelas páginas eram do vovô do vovô dele e ele não deixava ninguém pôr a mão. Mas depois que ele morreu a gente precisou delas para fazer cinza. Isso sei o que é. A gente põe na água que a gente faz virar fumaça e depois água de novo porque senão quando a gente toma a gente faz cocô mole e aí não dá para queimar e misturar de novo. Vovô dizia que vovô dele dizia que tinha muita água antes, até flutuando no céu, mas hoje só tem aquele negócio de sol que a gente não pode sair embaixo mais que vinte minutos porque é tudo aberto, isso se a gente estiver bem coberto. Vovô me deixou todas as cobertas dele porque à noite faz muito frio, porque ele dizia que me amava muito, mas porque ele acredita que posso usar elas para quando tiver que procurar um lugar melhor para ir daqui. Mas não sei se tem. E não sei se quero procurar. Todo mundo que vai procurar não volta ou volta e logo morre em seguida que volta. Não quero morrer, não quero morrer em seguida. Vovô dizia que tinha muitos animais na terra, terra é isso aqui no que a gente pisa, não só esses pretos fedidos, e muitas plantas verdes, não só essas plantas escuras e retorcidas e cheias de espinho que a gente vê quando olha para fora do abrigo bem rapidinho que senão queima. Essas que a gente faz aqui no nosso abrigo, vovô dizia que existiam muitas na terra, mas acho difícil imaginar. É tudo tão áspero e quente e tudo queima tão fácil lá fora durante o dia. À noite é áspero e frio. A gente dorme juntinho, mas mamãe fala que às vezes dói quando me aperto muito nela porque a pele dela arde muito. A minha também arde às vezes, mas não tanto do que quando respiro assim mais forte.

- V’cê num cansa d’ler is’não? – disse rouca a mulher abrindo os olhos de sono.

- T’procurand’alguma coisa qu’ajud’agente. – respondeu o homem.

Algum tempo se passou sem que nova palavra fosse dita na penumbra em que estavam. Ela sabia que não adiantava discutir. Ela sabia que ele releria aquelas folhas amassadas todas as manhãs como sempre fazia, esperando encontrar alguma solução nova para os problemas que tinham. Ela sabia que não adiantava. Onde ele as encontrara mesmo? Ele olhou as diversas latinhas e percebeu que uma das que davam uma frutinha roxa estava saindo do filete de claridade. Empurrando com a ponta do indicador, ele a recolocou sob o reflexo da luz do sol que partia de um pedaço de vidro posicionado debaixo de uma rachadura no teto de cimento.

- Ob’ebê parou d’respirar durant’a noite.

Ele olhou por cima das folhas de papel em sua mão e viu que o pequenino bebê estava quieto apoiado junto ao flácido e murcho seio da mãe, ainda meio encoberto por um pedaço de tecido azul-acinzentado.

- D’pois eu ponh’junt’com qu’a gent’iver pr’queimar. Deixa’l’no montinho.

A mulher olhou a intensa claridade que castigava uma parede distante no outro lado do cômodo e permaneceu algum tempo imóvel, imersa em seus próprios pensamentos.

- Tos’sangue d’nov’ess’noite.

Novos minutos se passaram mudos. A mulher pensava que a cada nova claridade mais e mais tempo o homem passava calado ao seu lado. Ela mesma perdia vontade de falar. Talvez não houvesse mesmo o que ser dito, e tudo fazia sentido.

- Ess’noit’eu consegui p’gar a rádio d’novo. – disse ele finalmente.

- Ah?

- Mesma coisa. Ele fica chamand’p’ra tod’mund’ir s’encontrar lá naquel’montanha.

- Já num dev’ter mais... ninguém lá.

O homem nada disse. No começo, ele não gostava que a mulher dissesse coisas como aquela, ele pensava que devia ter mais alguém para encontrar, e estas pessoas estariam naquela montanha. Havia algum tempo que eles seguiam na direção dela. Era só sempre seguir na direção em que o sol nascia, dizia a farfalhada voz na transmissão, que em algum momento se encontraria a montanha.

- Quant’emp’faz qu’a gent’aqui? – disse ela num sussurro.

O homem olhou algumas ranhuras na parede de concreto e as contou nos dedos.

- Trezents’e quarent’sete sols.

- Já?

O homem se levantou do canto em que estava enfurnado e se sentou ao lado da mulher. Passou levemente a mão sobre sua testa ressecada, retirou o corpo mole e sem vida do bebê em seu seio e o pôs ao seu lado. Tomou uma canequinha de lata em seus dedos carcomidos e passou a água túrgida de cinzas sobre os lábios ressequidos da mulher. Ela respirava a custo. Ele podia ver os ossos do seu rosto por baixo de sua pele pálida e enrugada. Ela não viveria muito mais. Talvez mais um sol, talvez menos. Sozinho ele chegaria à montanha? E se não houvesse mais ruínas como aquelas em que tinham se alojado? Era um lugar bom, por isso tinham ficado tanto tempo. E se em alguma ruína houvesse alguém que lhe quisesse fazer mal? Ele já não passara por tudo aquilo? Sem a mulher, ele não teria como carregar todas as suas coisas. E se alguém visse a sua fogueira à noite? E se alguém sentisse o seu cheiro? Ou o cheiro do que tivesse que colocar na fogueira? E se alguém lhe roubasse suas coisas? Como ele faria a água virar fumaça e depois fazer virar água de novo para poder colocar as cinzas? Ele tinha que fazer cinzas. E se alguém as roubasse? E se não houvesse mais ninguém? Não era melhor que ficasse ali? Até quando?

- Já. – disse ele.

Durante a noite, a mulher parou de respirar.

O homem ajustou algumas vezes o despedaçado aparelho de rádio que ele carregava consigo e duas vezes conseguira captar a transmissão de rádio, que se repetia, quebrada e chiada. Havia tempos que ele não conseguia aquele sinal. A montanha. Ele olhou pela janela: incontáveis pontinhos brilhantes cintilavam impotentes sobre sua cabeça e pela primeira vez lhe ocorreu o que poderiam ser. Quem os teria colocado lá? Com o bico do sapato, empurrou sua dezena de latinhas para que ficassem sob a débil luz da lua, apertou seus cobertores sujos sobre os ombros e braços e se sentou próximo a elas junto à luz e ao calor do fogo. Tirou uma porção de bolotinhas arroxeadas que cresciam de uma das persistentes plantinhas e enfiou-as na boca com uma mão trêmula e cheirando a excremento. Cuspiu as sementinhas e as enterrou fundo em uma lata maior, onde ele já começara uma nova horta de plantas daquele tipo. Tomou um gole da água cinzenta que estocava numa outra lata e deixou que o sono se apoderasse dele. Seria bom se aparecesse mais um daqueles besouros avermelhados que às vezes apareciam perto de onde ele deixava o monte dos seus excrementos; o gosto das frutinhas roxas já estava saturado na sua língua. No dia seguinte ele queimaria os corpos da mulher e do bebê, como fizera com os demais corpos que lhe tinham sido relegados e como era hábito fazer. Tirou o lenço que a mulher usava em volta do pescoço e o enrolou em torno do seu. Ela não precisaria mais dele.

- V’cê vai c’ntinuar sem’im. – a voz dela ecoou na sua cabeça.

- Vou.

Ao entardecer do dia seguinte, o homem espichou a cabeça encapuzada para fora do beiral de concreto e decorou a direção em que o sol se punha. Era só ir para o outro lado, terminar o que eles tinham começado. Suas coisas já estavam amontoadas em sacolas e mochilas: seu limitado herbário, garrafas plásticas com água túrgida, lonas enroladas, cacos de vidro e de metal, potinhos com todo material orgânico e toda cinza que pôde obter e encontrar, o corpo do bebê enrolado nas vestes da mulher. Em caso de necessidade. Seu desmembrado aparelho de rádio. No horizonte, as sombras de distantes ruínas se alongavam com a luz do sol e evidenciavam uma elevação de terra mais além. Uma montanha na direção onde o sol nascia... há tempos ele e a mulher seguiam naquela direção. Ele deveria chegar às novas ruínas durante a noite, ele não podia parar, ele morreria de frio, ele sabia. Ele não tinha a mulher para se esquentar nem para ajudar a carregar as suas coisas, ele precisaria deixar uma parte naquelas ruínas, mas sozinho ele conseguiria vencer uma distância maior. Ele chegaria ao outro lado ao raiar do sol.

Ao ver que a claridade estava suficientemente fraca, o homem tomou suas bolsas, sacolas e tudo mais o que pôde carregar, enrolou o pequenino corpo em seu peito e se cobriu com os incontáveis trapos e cobertas de que dispunha. Desceu a destroçada escadaria do arruinado edifício e pela primeira vez em muito tempo viu a grande massa escura com pontinhos brilhantes se estender ilimitadamente sobre sua cabeça. Havia outras ruínas ao pé da montanha, ele as via, ele as desejava, mas havia uma grande área deserta que ele deveria vencer se quisesse chegar até elas. Cobrindo a boca e o nariz com o lenço da mulher, o homem iniciou sua caminhada.

A cada passo, a noite ficava mais escura, as antigas ruínas mais distantes e as novas ruínas mais próximas. Ofegante, o homem olhou para trás e à longa distância se lembrou do dia em que ele e a mulher tinham chegado aos prédios destruídos onde estavam. Ela estava gorda, quente e forte. Mas uma daquelas tosses e daquelas tremedeiras a tinha pegado. Ele tateou por baixo do casaco até encontrar o botão do rádio e, girando-o de um lado para outro, captou novamente a velha transmissão. O sinal estava mais forte e mais claro. Ele olhou para frente: a montanha. Ele ouviu sua respiração acelerar excitada por baixo do lenço. Caminhou mais alguns passos e um novo sinal de sintonização partiu do rádio, mais alto e agudo. Sua excitação fez com que suas pernas se movessem cada vez mais rápido; a cada centena de passos, um novo silvo, mais alto e claro, disparava do aparelho. Novos assobios passaram a se confundir com os ruídos antigos e seu coração acelerava cada vez que o radinho soltava uma nova espécie de som. A montanha.

Um dos assobios, porém, fez o homem parar subitamente sua caminhada.

Ele desligou o aparelho, mas alguns dos estranhos assobios permaneciam. Ele conhecia aqueles assobios e havia muito tempo ele não os escutava. Ouvi-los novamente o fez estremecer. Olhando discretamente sobre seus ombros, pontinhos brilhantes, sempre aos pares, corriam furtivos à sua volta, piscavam, sumiam e voltavam a aparecer. Os assobios se confundiam ao som de rápidas patadas no solo arenoso e acidentado e sombras corcundas e arrepiadas se esvoaçavam sob a luz da lua. Ele sabia que aqueles animais só saíam à noite, para caçar uns aos outros; aquela noite, porém, havia algo a mais para caçar. O homem nunca os tinha visto perto das ruínas, mas alguma coisa, talvez a fome, os tivesse empurrado para perto das decadentes construções. Ele olhou para frente: os destroços já estavam próximos; talvez ele conseguisse subir em algum lugar alto, onde os animais não o alcançassem. Devagar, ele colocou suas sacolas no chão e retomou seus passos lentamente. Com o movimento, novos assobios se fizeram à distância. Ao perceber que os pontinhos brilhantes se multiplicavam, o homem começou a correr, derrubando seus pertences à medida que acelerava suas passadas. Alguns dos animais se detiveram nos objetos deixados pelo caminho, abocanhando, pisoteando e disputando cada farrapo sujo. O homem ouviu suas latinhas tilintarem arremessadas na escuridão. Outras passadas e outros rugidos, porém, o acompanhavam ao longo de sua corrida. A poucos metros, o homem distinguiu a sombra de uma escada de metal que pendia por uma parede de concreto, ele tinha que alcançá-la, ela estava tão perto.

Uma golfada de ar quente escapou de seu peito quando algo o empurrou com força por trás e o atirou contra o chão. Ele podia sentir o fedor carnicento que saía das bocas dos animais que o mordiam por toda parte, nuvenzinhas de vapor escapando por suas narinas. Esforçando-se para escapar do trio de predadores que o castigava mordendo seus grossos farrapos, o homem conseguiu se levantar e correr até a precária escada de metal que reluzia à luz da lua. Olhou para trás e viu que as criaturas se debatiam entre si em busca do corpo semidestroçado do bebê, que se desprendera de suas vestes durante a confusão. Exausto, o homem escalou a escadinha de metal e se aconchegou nos resquícios de um edifício, encolhendo-se de medo e de frio; poucos metros abaixo, um alvoroço de assobios e grunhidos selvagens se dissipava devagar, à medida que a claridade de um novo dia voltava a fustigar aquela terra desolada.

Abrigado num pedaço de sombra, o homem pôde distinguir seus pertences espalhados pela superfície descoberta, algumas das frutinhas roxas se queimando sob a perversa luz do sol. Girando o botão do radinho em seu bolso, ele encontrou o sinal que o chamava à montanha, um sinal alto e claro, sem chiados ou interrupções. A mensagem se repetia. Nítida. Enfiou a mão noutro bolso e desdobrou as páginas do diário que ele sempre lia a cada manhã. Grandes rasgos se fizeram em todas elas, havia algumas manchas de sangue e pouco podia ser lido. Esgueirando-se por entre as sombras dos escombros, o homem encontrou um novo abrigo e lá permaneceu, buscando com olhares furtivos e curiosos movimentos que lhe mostrassem algum sinal de humanidade. A mensagem se repetia; do outro lado das ruínas havia uma elevação de terra. A montanha. Ele chegara?

Acocorado em meio a um amontoado de entulhos e pedaços de madeira carbonizados, o homem abraçou seus joelhos e os esfregou com seus braços, garantindo que todo o seu corpo se encolhera debaixo de suas cobertas. Ele sentia que arranhões dispersos ardiam à medida que seu suor escorria sobre eles. Seus músculos latejavam. Sua cabeça pesava... ele chegara? À montanha? A mensagem o chamava. O chamava... o chamava...

O chiado de uma interferência o acordou de um sono sem sonhos. Ele recobrou seus débeis sentidos e pelas diversas rachaduras das paredes viu que avançara a uma nova noite. Não viria ninguém para recebê-lo, para ajudá-lo? E se a mulher estivesse certa? E se não houvesse, mesmo, ninguém? Não, ela estava errada. Ela estava errada. Não teria ninguém escutado todo o estardalhaço da noite anterior? Claro que teria. Com grande esforço, o homem se pôs em pé e caminhou cambaleante até uma janela destruída. A paisagem lá não era muito diferente da paisagem onde havia estado nos últimos trezentos e quarenta e sete dias. Não havia ninguém? Reunindo em seu peito forças havia muito tempo esquecidas, o homem encheu seus pulmões de ar e com dores emitiu um alto e primitivo ruído que ecoou pelas galerias das novas ruínas. Em algum lugar distante na escuridão, os assobios dos animais se excitaram e logo se dissiparam. Com novo esforço, o homem repetiu o grito, mas nada além de seu próprio eco lhe respondia.

Fábio Waki / Melissa S. Domingues

Introdução

Se o fim individual leva a estados de angústia diversos, a possibilidade de destruição universal da humanidade, de nosso planeta e da existência como nós a conhecemos poderia gerar um sentimento de fatalidade quase insuportável. Contudo, bem ao contrário, imaginar o fim do mundo é atividade frequente na longa História da cultura humana, com deslocamentos e mutações que vão do pensamento em torno do sagrado até a ficção produzida pela indústria cultural. O fim do mundo – identificado ou não com o fim da espécie humana, o fim da vida biologicamente complexa ou uma destruição cósmica que arrasaria nosso planeta – fascina, seu imaginário desloca-se facilmente do medo ao desejo (uma vez que a destruição implicaria uma mudança de estado, que não poucos consideram terrivelmente desejável), da repulsa ao êxtase, do fatalismo à catarse.

No primeiro semestre de 2010, dentro da disciplina TL096-A - Tópicos Especiais de Literatura e Outras Produções Culturais I, tentamos na medida do possível nos aproximar desse universo instável, nebuloso, perigoso. Várias estratégias de aproximação foram usadas, uma delas a criação ficcional por parte dos alunos, que assim percebiam a difícil tarefa do autor (de qualquer narrativa dentro do tema proposto) em articular um pequeno universo que sofreria a Extinção tão temida em nosso universo em geral. Os resultados foram incrivelmente estimulantes, com ampla variedade de tema, estrutura narrativa, forma/mídia de expressão, reflexão e posicionamento filosófico  – por isso, a decisão coletiva de tornar, na medida do possível, disponível a todos tal experiência de criação.

O fim do mundo, como construção ficcional, possui uma complexidade ímpar e um impacto cada vez maior em nossa sociedade hodierna, ela mesma cercada de ameaças apocalípticas – reais e imaginárias. A ficção exorciza alguns desses fantasmas, ao mesmo tempo que recupera a dimensão humana da extinção, esquecida por futurologistas que simulam a destruição com alegre prazer. No século XIX, o poeta Walt Whitman deu a dimensão desse universo em alguns versos terríveis e belos:

"Porque enfim compreendo que és os conteúdos essenciais,
Que, por qualquer razão, te escondes nestas mutáveis formas de
               vida, e que elas existem sobretudo para ti,
Que, para além delas, surges e permaneces, tu, realidade real, 
Que, sob a máscara das coisas materiais, aguardas pacientemente,
               não importa quanto tempo,
Que, talvez um dia, tudo dominarás,
Que talvez dissipes todo esse imenso desfile de aparências,
Que talvez seja para ti que tudo existe mas não perdura,
Mas tu perdurarás."*

Alcebiades Diniz Miguel

* WHITMAN, Walt. Cálamo. Trad: José Agostinho Baptista. Lisboa: Assírio & Alvim, 1999.