A senhora descia a rua com seu passinho curto e rápido. O guarda-chuva a protegia do sol do meio dia que castigava o asfalto. Subindo, no final da rua, via-se um ônibus. A senhorinha descendo e o ônibus subindo. Quanto mais o veículo se aproximava, mais nítidas ficavam as grandes manchas vermelhas na frente do ônibus. Então a senhorinha percebeu que não havia motorista. E o ônibus continuava a se aproximar, em alta velocidade; passou pela senhora e ela pôde ver que não só a frente do ônibus estava manchada de vermelho como os passageiros também estavam. Alguns, com a cabeça pendida para trás. Outros, dependurados nas barras do teto do ônibus. A senhorinha não conseguia entender o que estava acontecendo. Virou-se, enquanto o ônibus a ultrapassava. Quando o veículo chegou ao final da rua, lá em cima, virou-se e voltou a descê-la. Com maior velocidade. Se aproximando da senhorinha. Cada vez mais rápido. Ela então percebeu e começou a caminhar com um passo cada vez mais rápido. O ônibus a alcançou. Atingiu a idosa, comprimindo-a contra um dos muros da rua. Então, o ônibus sem motorista deu a ré, agora mais sujo de sangue, e subiu a rua novamente, se dirigindo ao centro da cidade. O corpo irreconhecível da senhorinha mergulhava em uma grande poça de sangue que o sol castigava e tratava de secar.
O pai levava os filhos para a escola em seu carro novo. O cheiro do estofado recém fabricado inebriava os passageiros. A facilidade da direção impressionava o pai. Os filhos estavam entretidos pelo filme que passava no aparelho de DVD. O pai, em seu caminho habitual, percebeu que o trânsito do centro não estava tão cotidiano: vários carros parados. Ao longe se via uma fumaça preta subindo. O pai tentou dar ré, mas viu que já havia outro motorista lhe impedindo. Resignou-se, então; estava no carro novo. No acostamento, um ônibus intensamente manchado de algo vermelho passa em alta velocidade. O pai mal tem tempo de cogitar que as manchas são de sangue quando o encosto do banco de seu carro novo rapidamente vai pra frente. O pai bate a cabeça no volante. O sangue começa a escorrer pelo cheiroso estofado. As crianças começam a se desesperar, mas os fones de ouvido que usam para assistir ao filme solta uma intensa descarga elétrica. Na mesma rodovia, os motoristas começam a sofrer com fumaça dentro do veículo e portas que não se abrem. Acendedores de cigarro que incendeiam. Cintos de segurança que enforcam. A fumaça preta que se via ao longe fica cada vez mais espessa e próxima. Gritos se fazem ouvir.
A professora fazia a chamada e percebia que algumas crianças haviam faltado. As crianças presentes pediam que ligasse os ventiladores; apesar de estarem dentro da sala, o sol aquecia o ambiente. A professora apertou o botão e os ventiladores não se moveram. Apertou novamente. Nada. Outra vez. Nenhum vento. Apertou pela última vez e os aparelhos continuavam estáticos. Disse às crianças que parecia estarem quebrados, mas o calor logo passaria. Enquanto começava a corrigir a lição da aula anterior, os ventiladores, que pendiam do teto, começavam a funcionar. O refrescante vento rodopiava pela sala, aliviando o desconforto. As crianças sorriram. A professora continuou a corrigir, com os olhos voltados para o livro. Somente quando pediu que um aluno lesse sua resposta e levantou os olhos que viu que os ventiladores desciam do teto, ligados, pendurados pelos fios elétricos. A professora gritou ao mesmo tempo em que as hélices desceram rapidamente, ainda funcionando. Nenhum aluno conseguiu desviar. A professora foi atingida pelo sangue quente que espirrava. Em choque, correu para a porta. Os ventiladores funcionavam e subiam calmamente para o teto, pingando o sangue que já inundava a sala e refrescando o ambiente.
A professora saiu da sala e começou a correr pelos corredores da escola. Entrou em uma sala e viu ali que os ventiladores também haviam descido do teto, atingindo o professor, além dos alunos. Nas outras salas, nem precisou entrar. O sangue escorria pelos vãos das portas. Atordoada, ela foi para a sala dos professores. A tela do monitor do computador havia estilhaçado e atingido dois professores. A máquina de café parecia ter jorrado líquido fervente em outros, cuja pele parecia líquida. Um dos atingidos pelo café fervente se mexia. A professora ia em sua direção quando a máquina de café jorrou mais água fervente. O corpo mal emitiu um som e parou de se mover. A professora correu para fora da escola. Havia corpos e sangue por todos os lados: dentro dos carros, em cima deles. Na esquina da escola, um ônibus escolar cheio de alunos ensangüentados. A professora correu. Não sabia para onde, mas correu.
Sob o viaduto, escondido dos olhares de todos, um mendigo dormia até que começou a ouvir gritos e barulhos estridentes. Olhou para as avenidas que passavam sob o viaduto e viu carros incendiados, corpos ensanguentados no interior dos veículos. O que está acontecendo? Bebi muito outra vez. Mas não tinha dinheiro pra comprar bebida. Estou sóbrio e acordado. O mendigo saiu de seu esconderijo e sorrateiramente escapou das avenidas. Olhando de esguelha para trás, sua atenção se voltou para os inúmeros pontos de comércio existentes em seu caminho. Viu as fritadeiras das pastelarias que continuamente despejavam óleo fervendo nos corpos esparramados. Os bancos com as portas de vidro fechadas e milhões de notas abarrotando seus interiores. Em um café, com as portas também fechadas, um homem esmurrava o vidro que parecia inquebrável. Do lado de fora, o mendigo ouvia o som ensurdecedor que tocava dentro do estabelecimento. Tentou abrir a porta, mas não conseguia. O homem lá dentro se desesperava. Os murros ficavam cada vez mais fracos. O sangue começou a escorrer pelos ouvidos e pelo nariz. O homem tombou e o mendigo começou a correr. Não sabia para onde, mas correu. O sol já não fustigava a cidade, começava a se recolher.
O mendigo correu para uma espécie de bosque que ainda existia em um dos bairros altos da cidade. Não sabia o que havia lhe feito ir até ali, mas lá encontrou mais algumas pessoas. Uma mulher ensangüentada dizia que em sua escola, todos os alunos foram mortos pelos ventiladores. Outros diziam que os carros começaram a se mexer sem razão aparente. Chuveiros desregulados que jorravam água escaldante. Fogões que soltavam gás ou então se incendiavam. Televisões que cegavam, ensurdeciam e explodiam. Ônibus sem motoristas que atropelavam pedestres.
Ninguém entendia. Não era mau funcionamento. Não era problema da rede elétrica. Os equipamentos e aparelhos agiam sozinhos. Via-se, ao longe, o sol se pondo e o centro da cidade em fogo puro e fumaça. Ouviam-se pneus de carros cantando, estalos da rede elétrica. Não se ouviam vozes ou gritos.
As poucas pessoas que estavam no bosque se deitaram no chão, próximos às raízes das grandes árvores. Conseguiram adormecer, apesar do dia que tiveram. Durante a madrugada, mais gritos. A professora e o mendigo, que adormeceram próximos um do outro, acordaram sobressaltados. A pouca claridade da lua deixava ver pouca coisa. Não viam as raízes das grandes árvores puxando as pessoas para baixo. Não viam os galhos perfurando gargantas. Na verdade, só perceberam o que se passava quando foram puxados para baixo e estrangulados pelas raízes fortes.
Ao longe, o fogo continuava a consumir a cidade e secar o sangue que fora derramado. Ensangüentado estava agora também o solo do bosque. Encharcado. Nutritivo.
Rômulo Silva
Impressionante como a repetição da imagem do sangue ganha um sentido todo novo com os três últimos períodos.
ResponderExcluirTambém é muito interessante o uso de uma premissa simples para a construção bem feita das cenas, tanto na repetição sistemática do formato quanto na inventividade das situações.
Algo que me incomodou foi o parágrafo "Ninguém entendia", mas é uma passagem que faz todo o sentido cultural e psicológico (a necessidade das pessoas entenderem o que veem, e de adequar a natureza a essa demanda) e ainda mina esse esforço fútil da mentalidade dos personagens. É difícil unificar as duas frentes de ataque à raça humana em uma única lógica, deixando só a inevitabilidade do fim.
Especialmente quando se volta para o terrível e princípio básico: nutrição. Afinal, embaixo do asfalto ainda existe terra.
Pedro de Biasi