Uma mente sã não poderia articular as (se é que se pode usar essa palavra) façanhas que doutor Javier realizou. Um teatro de fantoches, um jogo psicológico muito bem montado. Jogo de influências, jogo de vida e morte.Talvez seja necessário começar o relato com o histórico de nosso personagem principal.
Formado em psicologia, aluno sempre aplicado, freqüentador das melhores notas, introspectivo, sem muitos amigos, observador. Bonito, dono de um andar charmoso e seguro, quando jovem teve uma ou duas namoradas que não duraram, e repelia qualquer outro contato de outras moças que por ele se interessavam. Emendou, na mesma instituição, em que se graduou, mestrado na graduação, doutorado no mestrado e pós doutorado no doutorado, ocupando logo em seguida o cargo de docente e pesquisador.
Entre a sociedade acadêmica de psicologia e psiquiatria, seu titulo de doutor era proferido com ironia. Todos desprezavam seus objetos de estudo: as relações professor/aluno e as possíveis relações de dominação e influência aí existentes. Nenhum professor sentia-se confortável com eventuais trabalhos acadêmicos analíticos que os incluía, que os espetava. E o constante isolamento de Javier, junto com uma velada predileção da direção – deveras estranha e suspeita – por sua pessoa aumentava ainda mais o desprezo e desagrado de seus colegas.
Na sua vida pessoal adulta, nada era diferente. Afastara o máximo possível sua mãe, já velha, e sequer sabia se seu irmão mais novo ainda era vivo. Dos colegas de faculdade, esquecera o nome de todos e não fazia esforço algum para lembrá-los. Continuava repelindo proximidade das mulheres, fossem alunas em busca de nota ou colegas de profissão que cobiçassem ter uma análise mais profunda do bonitão misterioso de andar altivo e seguro.
Sua verdadeira paixão era observar as pessoas. Sempre um poço de auto-controle , enquanto frio fora da sala de atendimentos era solícito e quase carinhoso com os pacientes que se confiavam às suas mãos, todos necessários como objetos de estudo e exemplos para teses e teorias, sendo, de outra forma, descartáveis. Mantinha com seus alunos apenas o contato acadêmico usual, porém procurava ser simpático ou permissivo, sempre estendendo prazos e sendo generoso em notas. A grande parte de seus alunos – ansiosos por se formar – eram inteligentes o suficiente para ouvir suas palavras e ler suas teorias escondendo o escárnio pelo professor em questão, que já lhes tinha sido incutido pelas mãos e vozes habilidosas do restante do corpo docente. Javier, como orgulhoso que era, ávido por reconhecimento e respeito, poder e posses, respondia às pessoas que o hostilizavam sutilmente com arrogância e fuga. Eventualmente um ou outro aluno, sempre daqueles mais quietos, misteriosos, que a um exame mais minucioso talvez revelassem um brilho obsessivo no olhar, interessavam-se mais a fundo por doutor Javier e suas teorias.
Ele aparentava estar acima de todas as relações mundanas e do julgamento que seus colegas faziam dele. Mas o que ninguém sabia de fato era que o doutor nutria profundo desgosto humilhado, que fermentado desde seus tempos de faculdade, transformara-se em puro ódio obsessivo, sedento de fatos e experiências que pudessem provar sua teoria e assim pudesse saciar sua sede de vingança, esfregando prêmios de psicologia na cara de seus “colegas”.
Fruto de seus estudos e de uma mente provavelmente perturbada – ninguém jamais saberá – ele criou um teatro de fantoches. Preparou cuidadosamente o cenário: Um galpão na rua quinze B, número 765, num bairro afastado, paredes escuras, iluminação indireta e toques de crueldade clichê: cortinas vermelhas, cadeiras que poderiam passar por tronos e diversas câmeras gravando o ambiente em tempo integral, como se faz a cobaias em um estudo. Seus bonecos: a princípio um aluno vulnerável, e posteriormente, mentes perturbadas da região toda. As cordas que o permitiam ter o controle sobre seus bonecos: o conhecimento da alma humana (há quem chame isso de psicologia) e seus medos mais profundos e suas palavras bem articuladas.
Nada ele deixou escrito, nenhum arquivo que a polícia pudesse rastrear, nenhum e-mail disparado de suas diversas contas, nenhum indício que seus colegas de faculdade pudesse tirar sarro de, ou mesmo achar suspeito. Tudo foi feito com cuidado e esmero. Era para ser, obviamente um plano infalível, exceto pelo final. E talvez até o tenha sido.
O começo se deu com um aluno com quem se identificou. Magrelo, branquelo, excluído, isolado, esforçado, mas não inteligente, talvez um pouco mais interessado pelo professor do que argumentos acadêmicos poderiam justificar. Paira a dúvida se a possibilidade surgiu do primeiro contato feito pelo aluno, ou se já existia por parte do doutor alguma intenção à espera apenas de um alguém vulnerável, sedento de atenção e carinho que pudesse comprar suas idéias. Marlon não sabia porque cursava psicologia. Não sabia porque não gostava de meninas. Não sabia porque sua mãe o havia abandonado, não sabia porque seu pai bebia, não sabia porque tinha apanhado desde a segunda série ao terceiro colegial, não sabia porque o doutor exercia tamanho fascínio sobre seu corpo e sua mente. Não sabia, mas tudo acontecia.
Sendo assim, uma tarde, após a aula, fingindo interesse nas teorias sempre rejeitadas de Y, Marlon gastou um tempinho a mais para guardar suas coisas, enquanto a sala rapidamente se esvaziava. As câmeras de segurança do campus não captaram as vozes. Mas o aluno aproximou-se do professor e poucas palavras constrangidas foram trocadas, ficando o estudante sozinho na sala após poucos segundos. Uma proposta indecente, talvez, um professor surpreendido, uma reação impensada, talvez. Tudo se infere, nada se confirma.
O fato é que exatamente uma semana depois, após a mesma aula, Marlon fez menção de ter a reação oposta a que tivera anteriormente e sair rapidamente. E foi a vez dele se surpreender. Javier não esperou que a sala se esvaziasse – nenhum aluno sequer olhava para ele ou o cumprimentava ao ir embora – caminhou até Marlon e, supõe-se, chamou-o a sua sala. Mestre e discípulo saíram juntos do recinto e caminharam ombro a ombro, um imponente, outro tímido. Até uma das melhores salas de professores da faculdade. O que se passou ali ninguém, além dos livros nas estantes e dos sofás de couro, tapetes persa e todo o resto da rica decoração, sabe. Mas algo foi falado, algo foi ouvido, um convite foi feito e lançando mão de alguma persuasão, sábado encontraram-se os dois no galpão da rua quinze, numero 765.
Tendo chagado antes, as câmeras registraram todo o preparo e esmero que Javier empregou no ambiente. Posicionou uma cadeira de espaldar reto e alto e estofado vermelho no centro do palco, acendeu drogas de cheiro doce e efeito alucinógeno em recipientes estrategicamente espalhados pelas paredes, afim de atingir todo o ambiente. Poderia-se dizer, pelo tamanho do ambiente e pelo cuidado, que duzentas pessoas estariam ali ouvindo uma palestra importante ou cultuando algo obscuro.
Mas não naquela noite. Aquela noite era especial. Era a primeira. Era o começo. O nervosismo do professor o denunciava, mão trêmulas, andar impaciente. Mas assim que Marlon entrou pelas portas duplas, ombros encurvados, medroso, porem com expectativa e excitação no olhar, Javier mudou. Suas feições adquiriram um ar superior, porem compreensivo, quase paternal, pronto para suprir as necessidades que ele sabia que sua cobaia tinha. Naquela noite, as paredes e os lampiões testemunharam poucas palavras, quatro mãos, quatro pés e dois corpos em rituais simbólicos e sodômicos. Uma instituição de hierarquia apaixonada e dominação má intencionada e mascarada.
O contato de Marlon e o professor na faculdade foi reduzido a zero nas semanas posteriores. E duas semanas após aquele encontro, ninguém desconfiava, talvez porque ninguém tivesse notado, que a súbita mudança de postura de Marlon – ombros eretos, meios sorrisos enigmáticos – tinha algo a ver com um caixa, cujo esconderijo era os fundos de sua gaveta em seu quarto, que guardava mechas de cabelo, preservativos, tocos de velas pretas e memórias de um passeio com Javier em uma noite morna que ferveu seu coração carente.
Já se havia passado dois meses do primeiro encontro e Marlon continuava indo ao numero 765 da rua quinze todo sábado. Graças aos contatos do rapaz em jogos RPG online, o público do “mestre” Javier aumentara de um para cinco jovens. Todos usavam seus próprios nomes, todos tinham chances de falar, a todos era permitido ser quem realmente eram. Comunicativos ou não, dark, brega, esquisitos, gordos, magros. Javier cuidava para massagear o ego de todos eles, lhes dava liberdade o suficiente para opinar, para expressarem todo – todo mesmo – tipo de reação e sentimento que quisessem, sem jamais perder o controle da tênue linha que separava um grupo com um líder inspirador de uma anarquia. Havia regras, nunca explícitas, sempre claras e absolutas: confidencialidade, lealdade, disfarce fora dos encontros.
O que os pequenos crentes jovens não sabiam, pobres coitados, era que suas mentes estavam cuidadosa e sutilmente sendo lavadas e adaptadas por seu venerado mestre. Javier sabia bem demais em que pontos tocar, o que falar, o que fazer para conquistar e influenciar cada um que se apresentasse a ele. Suas verdadeiras intenções, porem, seus seguidores jamais saberiam. Ele queria provar, a princípio, suas teorias acadêmicas e emergir na sociedade da psicologia. Mas algo talvez tenha crescido em seu coração, em seu ego. O reconhecimento que jamais tivera. Poder real sobre as pessoas, influência plena, como sua teoria propunha. E sua brincadeira, como uma mentira contada muitas vezes, saiu do plano da pesquisa acadêmica irresponsável para o plano real. Passava cada vez menos tempo em sua sala na faculdade, seu jardim deixara de ter o gramado aparado e a casa agora apresentava irregularidades na fachada outrora perfeitamente cuidada. As gravações das câmeras instaladas no galpão da rua 15, número 765 revelavam agora um Javier com vincos de preocupação entre as sobrancelhas, bolsas sob os olhos: fruto de noites em claro escrevendo discursos, cartas e tratados, que eram cuidadosamente queimados após cada reunião do grupo, junto com outros objetos macabros, como peles de animais, dvds, cds, roupas.
Já era pelo sexto mês de encontro do grupo, agora com quinze participantes, quando a primeira demonstração de lealdade foi proposta por Javier. É certo que seu público tinha já alguma inclinação ao macabro e sombrio. É certo também que o professor, em acessos de poder e demência, vislumbrou uma chance imperdível de provar à sociedade a veracidade de suas teorias e o poder a ele conferido através da aplicação das mesmas. A sua vontade era direcionar suas ações a seus “algozes” e assustar os membros da sociedade acadêmica. Mas suas faculdades mentais lógicas ainda estavam em perfeito, senão em melhor estado, e uma eventual investigação levaria a polícia a ele com a colaboração do desagrado de seus colegas e sem muito esforço.
Depois de três noites sem dormir, duas faltas na faculdade justificadas com uma gripe inventada e refeições malfeitas, no encontro de sábado, Javier escolheu cinco dos seus. Marlon, seu sublíder, três dos mais antigos e um dedicado “servo” dos mais novos. Levou-os, ao fim do culto para a saleta atrás do palco, território restrito aos jovens anteriormente e os confiou a missão. A principio, deu coordenadas exatas. Era necessário induzi-los a pensar a lógica dos fatos, ensiná-los a pensar com malicia e realizar auto-analise dos fatos antes que estes ocorressem, evitando erros.
No dia seguinte, uma pequena nota na página de obituários do jornal anunciava a morte de um mendigo que vivia por perto da rua quinze. Sua morte por carbonização foi atribuída a uma lata de álcool, um palito de fósforo e uma ponta de cobertor sacudida pelo vento. Mas o que a polícia não sabia era que havia um Marlon e alguns amigos eufóricos com um passeio que haviam dado na noite anterior. E que a caixinha de “importantes” de Marlon, no fundo da gaveta, continha agora meia garrafa de álcool e um canivete.
Javier havia começado a provar sua teoria. Influenciara rapazes que sequer conhecia a cometer um crime. E os deixara com a consciência tranqüila o suficiente para acreditar que haviam feito um favor ao mendigo. Os conceitos de certo e errado, o que havia de mais intrínseco à vida de uma pessoa, de mais imutável estava nas suas mãos. E sem muito esforço, apenas paciência. Mas ele ainda não poderia provar nada assim. Era preciso algo maior. Recrutar mais gente. Mais seguidores.
Foi quando o doutor saiu do controle. Se é que ainda existia nele algum. Sua mente doentia já ruía seu auto-controle. Seu andar perdera o charme, seus pacientes não mais recebiam ligações cancelando consultas, as notas de fim de semestre já estavam atrasadas há semanas. Suas roupas – fora as roupas dos cultos, que começavam a adquirir tons vermelhos e dourados – andavam em desalinho e a maioria de seus pertences pessoais essenciais encontravam-se na salinha dos fundos do galpão da rua quinze, número 765.
Seus seguidores estavam apaixonados. Não pelo homem Javier, mas pelo que eram quando estavam naquele grupo. Por como podiam ser eles mesmos nos seus instintos mais lascivos e cruéis e até mesmo bobos. Por como se respeitavam mutuamente. Mas Marlon, o escolhido número um, foi o primeiro a notar e se incomodar com as mudanças de seu mestre. A sua atenção exclusiva estava sendo reduzida drasticamente, o mestre estava aéreo nos momentos fora do culto. Ninguém mais de seus companheiros parecia notar, ou se notavam, não se importavam.
O mundo nunca foi horrorizado pelas palavras do doutor que inspiraram seus pupilos numa noite muito fria de junho: as câmeras de segurança nunca têm som. Mas os dezessete presentes naquele galpão outrora cuidadosamente preparado vibraram, acreditaram, ficaram cegos. E saíram naquela noite, divididos em dois grupos, prontos para aliciar pelo menos mais duas pessoas. E a missão deles era complexamente simples: fazer com algum outro ser humano a mesma coisa que Javier havia feito com eles. Ou seja, gerar motivação para juntar-se ao grupo, porém de forma muito mais desagradável. O troco que o doutor daria à sociedade pelas mãos de seus pupilos.
Então, com Marlon liderando um grupo e o (ex) novato dedicado liderando outro, partiram para bairros opostos da cidade, munidos de diferentes aparatos. O grupo um carregava latas de gasolina e um isqueiro. O grupo dois, garrafas, facas e punhos sedentos.
A página policial do jornal da manhã seguinte trazia em letras garrafais um crime hediondo. Uma família, numa casa simples inteira dizimada. Mãe e filha estupradas. Pai torturado, provavelmente assistira também à tortura da família. Cortes, olhos furados, pele queimada, espancamento. E um filho de 14 anos suspeito de participar do crime – desaparecido. Não é necessário dizer para onde ele fora levado em estado de choque para começar a ter sua visão de mundo mudada. A página dos obituários novamente trazia um incêndio, desta vez numa casa qualquer de um bairro qualquer com todos os mortos que havia na casa. Menos a filha adotiva, que fora milagrosamente salva por um grupo de jovens simpáticos que passava por ali, segundo uma vizinha.
E dali duas semanas, mais um crime e um acidente. Um vazamento de gás, com mãe e neném mortos em seus leitos, mas um pai jovem que dormiu no escritório com a porta fechada e a janela aberta, provavelmente sumido no mundo consumindo-se em culpa. E uma gang que começava a assustar e ser nomeada com nomes ridículos como a mídia adora fazer. Os mesmos traços de violência gratuita – mas eles sabiam que não era, havia motivos, havia princípios, havia necessidade de aumentar o grupo! – e uma ex-mulher que sumira misteriosamente.
Marlon participava de tudo aquilo e assistia o grupo do (ex) novato dedicado cometer as maiores crueldades de mãos atadas e indignado. Seu grupo o pressionava a adotar as mesmas táticas, ávidos por liberar seus instintos, e eram indiretamente encorajados por um Javier de olhar louco, satisfeito, que esquecera de suas teses e teorias e via seu rebanho de súditos crescer a cada dia. Considerava comprar-se uma coroa. Ele merecia, afinal. Mas seu primeiro recrutado parecia disposto a causar-lhe problemas. Após um culto de quarta-feira (eram agora diários) invadiu os aposentos atrás do palco. E a falta dos microfones das câmeras novamente evitaram que o mundo ouvisse as palavras quase racionais do discípulo para o mestre, tentando demove-lo. Afinal, libertar-se, sentir-se bem, ser quem e o que se quer, a causa, o grupo, nada disso incluía outras pessoas sentirem dor. Matá-las sem dor, dopá-las antes do fogo, antes da asfixia, porque não? A morte viria de qualquer jeito, mas poderia ser sem dor. Mas também o estardalhaço da mídia seria menor. O doutor, porém estava irredutível. E mais magro. E com olhos fundos e roxos. E quase babava. Houve um silencio na conversa, argumentações cessaram. O coração de Marlon havia amolecido. Javier, seu querido Javier precisava de sua ajuda, precisava de cuidados do seu primeiro aluno, de seu primeiro parceiro na empreitada. E assim tentou fazer.
Na semana seguinte à briga, no entanto, o esquema de recrutamento foi alterado. Marlon foi transferido, sem autoridade alguma para baixo do comando do (ex) novato dedicado e uma moça dedicadíssima, que passara a freqüentar muito os aposentos de trás do palco ultimamente, preencheu a vaga de líder do primeiro grupo. E que não houvesse questionamentos, que nenhuma boca se abrisse, eram decisões do mestre. E liberdade de expressão não mais havia. E o grupo já tinha trinta e poucas pessoas. E já havia gente de quem nem se sabia o nome. E aquela noite seria determinante para o futuro daquelas vítimas de um louco.
O grupo da moça que freqüentava os aposentos de trás do palco inovou e as páginas dos jornais do dia seguinte – já haviam atingido jornais nacionais, as gangues da pequena cidade – trouxeram a hipótese de uma nova gangue, rival a anterior, quem sabe?.. que matava enforcando e asfixiando. Seus alvos da vez? Professoras e alunos de uma escolinha em uma inocente noite de festa do pijama. Três crianças desaparecidas. Mas estranhamente, aquele foi o único crime das páginas policias daquele dia. E não houve incêndios, não houve vazamento de gás ou algo que indicasse a atividade de algum outro grupo criminoso. E nem Marlon e nem o (ex) novato dedicado apareceram no galpão da rua quinze, número 765 naquela noite. Pelo menos não que alguém tivesse visto. Javier sequer deu importância ao fato. E a iniciação dos novatos foi começada, como de costume, com os chás de sempre, as musicas e as capas vermelhas. Naquela noite, o primeiro dos recrutas testemunhou de um esconderijo conveniente no telhado, sóbrio e trêmulo, sentido dores como não sentia em muito tempo, seu querido Javier exortar seus discípulos. Presenciou a loucura da qual fez parte por tanto tempo. Chegou a murmurar consigo mesmo algumas das batidas e ritmos e sentiu falta de quando criavam as musicas. De quando eram só seis rapazes com problemas em fazer amigos. E tinha a atenção e o carinho de Javier.
Sua decisão foi então tomada. As outras pessoas não tinham mais que sofrer. E só ele poderia colocar fim àquilo tudo. E estava decidido. E sóbrio. E trêmulo. E em dor. E não conseguia pensar direito. A auto-analise, a auto-analise, nada poderia dar errado, mas era difícil pensar. O melhor seria esperar, quieto, perto da entrada, onde poderia ver quando todos saíssem. Não poderia acabar com todos eles, nem todos eram culpados. E não teria forças para enterrá-los. Quase morrera em um acesso de asma ao cavar a sepultura do ex vivo (ex) novato dedicado; afinal ainda era magrelo. Curvou-se então, em algumas sombras perto da saída do santuário. Se as câmeras de segurança tivessem som, é certo que o coração dele poderia ser ouvido nas gravações, tão alto batia. Saíram aos poucos, discretos. Contou-os com dificuldade. Faltava um. Esperou. Faltava um. Esperou. Recontou mentalmente. E lembrou quem faltava. Ela. Ele sabia onde ela estava. Era a hora.
Marlon arrastou-se para dentro do salão indo direto para o depósito, tentando fazer o menor barulho possível. As coisas tinham que entrar em foco, a auto-análise, a auto-análise. Precisava conseguir pensar. Só um pouco, para pensar. E cinco minutos depois de chegar ao depósito, tinha um plano claro em mente. E um pé de cabra. E uma garrafa quebrada. E fúria e inveja e ódio. Dirigiu-se para os aposentos atrás do palco. Parado atrás da porta, ele podia ouvir os gemidos. Podia cheirar o que um dia fora seu. E não pode mais esperar, o sangue zunindo em seus ouvidos, o ódio e as lágrimas turvando-lhe a visão.
Ela foi arrancada de cima do doutor com uma rápida e extremamente forte garrafada na têmpora. Marlon viu os olhos do doutor, exposto em sua nudez, cru, sem roupas vermelhas, sem artifícios, indefeso. E com medo. E já não parecia tão inspirador. Balbuciava, sentido próximo seu destino. E sentindo uma dor lancinante no estômago ao ser atingido pela primeira vez no estômago. Teve sorte de ter sido atingido pela segunda vez na cabeça; seu corpo continuaria vivo por ainda cerca de meia hora, tendo costelas quebradas, pulmões perfurados, traumas no crânio e órgãos dilacerados. Mas ele já não mais sentia. E Marlon deu seguimento a seu plano.
Ela, nua, sangue escorrido por todo o corpo, foi suspensa pelo pescoço sobre o palco, logo acima do trono. Mais uma passada no deposito, uma arma. E a mensagem de texto que convocaria o grupo todo para uma reunião de emergência, enviada do celular de Javier. Esperou fora do galpão. Aos poucos, foram voltando seus companheiros, um a um. Acumulou-os todos fora do galpão “seguindo ordens”. Tendo chegado quase o grupo todo, ignorando alguns murmúrios curiosos, deixou que entrassem, trancou a porta. Ordenou que tomassem seus lugares. Identificou as quatro principais lideranças do grupo, gravou seus lugares na mente e foi para trás das cortinas. Sentiu, subitamente, o cheiro metálico de sangue que saía dos aposentos atrás do palco e vacilou. Era o sangue de Javier, seu Javier. E quase pensou em passar no depósito novamente, se encher de um pouco mais de coragem. Mas não havia tempo. Abriu as cortinas. Deliciou-se ao ouvir gritos e cadeiras se movendo. Surgiu no palco.
A câmeras continuavam sem som mas as palavras dele eram quase audíveis. O que ele fez com ela. Porque ela se rebelou. Porque ela não quis cumprir uma ordem. Onde estava a liberdade. Onde estava todo o prometido. E o efeito que ia passando, e seu raciocínio que ia ficando bagunçado. E não eram assassinos, no que tinham se tornado, ele havia fugido, estavam órfãos, não, não queria tomar o controle, não sabia de nada, não havia, sim tinha sido a mensagem dele, como do celular do mestre não sei é que eu cheguei ela morta eu tava lá eu num sabia eu eu eu CHEGA!
E atirou. Quatro vezes. Errou duas. Acertou em um alvo planejado e em outro que não estava na lista. E aconteceu o que esperava, o que precisava, o que sabia. Viu as sombras, os vultos, os monstros lhe alcançarem. Sequer correu, apenas desejou ter passado no depósito, ajudaria a não sentir. E desejou que os primeiros golpes fossem desferidos na cabeça, para parar de sentir logo. Logicamente, seu desejo não foi atendido. Teve sorte, porém, de conseguir ver, antes do sangue bloquear sua visão, que alguns – a maioria dos mais novos que caíam em si começavam a discutir e brigar e socar e fazer o que faziam de melhor dentro do santuário, uns contra os outros, dentro do galpão outrora cuidadosamente decorado. Eles se destruiriam. Tomara. Apagou.
A página policial dos jornais – rede nacional – do dia seguinte, surpreendentemente já tinha detalhes da “briga de gangues” rivais da madrugada anterior que havia deixado mais de vinte mortos e alguns feridos no galpão da rua quinze, numero 765. Três dias depois, uma manchete no jornal da cidade noticiava que um corpo fora achado no terreno do galpão da rua quinze. E naquele ano, exceto por uma apreensão ou outra de tráfico de drogas, as páginas policiais dos jornais da cidade mantiveram-se de luzes apagadas.
Pena que não se possa dizer o mesmo das páginas policias dos jornais de alcance nacional...
Amanda Ágata Contieri / Gabriela Ferraz Granja / Juliana A. L. Torquato / Karina Ciotto dos Santos
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