O sino da igreja vizinha acaba de soar. Uma mancha rubra cobre o céu como se um ataque sanguinário tivesse aterrorizado o paraíso e suas vítimas tapassem as estrelas. O medo impera no pensamento das pessoas que saem da casa de Deus, aliviadas após a bênção divina. Tentam voltar o mais rápido possível a seus lares em meio a esta noite sombria.
Faz frio. O vento balança os cabelos de Madá, que está na frente da janela de seu quarto, com os olhos profundamente infiltrados em seus pensamentos.
A modesta luz do poste na rua ilumina o rosto do homem estirado no chão. Ele olha para a imagem de Cristo em suas mãos como se rezasse. Tem o corpo exalando sangue, empestando o ar.
Madá sente o rosto umedecer ao levar as mãos de encontro aos olhos. Vira-se com calma para o espelho e ele revela a cor vermelha espalhada em sua face. Vê-se toda manchada daquela cor. É seu corpo nu. Corpo tantas vezes tocado por homens corrompidos. Seu objeto de trabalho, seu objeto de pecado.
Já não é mais aquela menina que mal tinha tamanho ou seios. É uma mulher! Tem corpo de mulher, rosto de mulher. Parecida com sua mãe, cuja lembrança só traz desprezo e nojo. Pelo menos agora não precisa mais pagar-lhe. O fruto de seu corpo é todo seu.
Sente um aperto no estômago, uma dor angustiante, uma ânsia de vômito. Algo que a faz curvar-se e ver o livro preto no chão, ao lado do espelho. Ele, o começo de tudo.
***
Era um dia muito quente. “Foi um belo sermão, padre”, disse a carola ao fim da missa, “Estou até emocionada”. Ele sabia que era mentira, mas mesmo assim agradeceu. Havia algo de errado naquele dia. Foi como se o Senhor houvesse lhe dado as costas e o tivesse abandonado sozinho no altar. Uma missa em que Deus não estava presente.
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Era um dia muito quente. “Foi um belo sermão, padre”, disse a carola ao fim da missa, “Estou até emocionada”. Ele sabia que era mentira, mas mesmo assim agradeceu. Havia algo de errado naquele dia. Foi como se o Senhor houvesse lhe dado as costas e o tivesse abandonado sozinho no altar. Uma missa em que Deus não estava presente.
O sacerdote saiu amuado para a frente da igreja e ficou observando os fiéis que voltavam a seus lares. Era uma tarde de muito sol e a luz refletida no asfalto o fez tapar os olhos por um instante e virar o rosto em direção a uma casa vizinha. Ela estava entrando, sempre ela!
Quantas vezes não havia visto aquela mulher entrar em casa? Mas sozinha, era a primeira vez. Sabia muito bem o que se passava naquela casa e muitas vezes criticava a situação pecaminosa ao lado do templo santo. “Uma pouca vergonha, um absurdo!”. Mas ele sabia, também, que por trás da crítica havia um desejo. Um desejo que todas as noites ocupava seus sonhos, refletido na figura da vizinha. Ela agora entrava em casa; sozinha.
“Sozinha!”, pensava. De repente um sentimento estranho tomou conta de seu corpo. Uma força incontrolável que o guiava até aquela casa. O desejo por tanto tempo oprimido, finalmente invadiu sua carne.
Quando deu por si, já estava sobre ela. Fazia muito calor, mais que do lado de fora. Suava. Sentia um prazer que jamais havia entrado em contato. Um momento de êxtase, uma libertação. Eram anos de reclusão que saíam de seu corpo e invadiam aquele antro de pecado.
Então, o rosto que se deleitava em prazer, tomou para si uma expressão de desespero. Um grito choroso arranhou sua garganta e apoderou-se do quarto. Saiu correndo. Nem percebeu que havia deixado cair no chão, um livro preto.
Então, o rosto que se deleitava em prazer, tomou para si uma expressão de desespero. Um grito choroso arranhou sua garganta e apoderou-se do quarto. Saiu correndo. Nem percebeu que havia deixado cair no chão, um livro preto.
Madá levantou as sobrancelhas e pensou: “Mais um louco”. E aquele objeto jogado no chão foi o único motivo pelo qual ela não reclamou seu pagamento. Era a primeira vez que a meretriz entrava em contato com as palavras de Deus. Aquilo, de alguma forma, despertou o interesse dela e tomou grande parte de seu dia. Um semblante de espanto e horror. Era mais que uma simples leitura. Era o início de uma guerra.
O Primeiro chegou, como de costume, às dezenove horas do domingo. Madá estava mais animada do que sempre esteve. Era um impulso sombrio, quase psicótico. Seus olhos pulavam para fora, como se ensaiassem um ataque e as risadas simulavam a aproximação mortal de uma fera carnívora.
“Que fogo, Madá!”, dizia o Primeiro, passando levemente a mão nas pernas da moça. Beijaram-se rapidamente, até que a mulher dirigiu-se à cozinha, virando os olhos para seu parceiro da noite.
“O que tem aí na taça?”, ele cheirou, “Não posso! É meu estômago. Ele rejeita” Sentiu um incômodo desesperador na barriga. “Bebe logo!”, ela disse. “Tá louca? Uma faca?”. “Cala a boca e bebe!”.
Não havia alternativa. Era beber ou morrer. Quem sabe as duas coisas. Ele suava frio. À frente os olhos amedrontadores da prostituta. Abaixo um instrumento fatal que o ameaçava sem culpa. Bebeu.
A facada veio logo depois. Uma ferida no estômago que jamais seria curada. Um gemido. Um barulho de queda. Era apenas o primeiro.
A facada veio logo depois. Uma ferida no estômago que jamais seria curada. Um gemido. Um barulho de queda. Era apenas o primeiro.
Madá sentia uma felicidade inexplicável. Algo como a sensação de dever cumprido. Lançou no ar uma gargalhada que se ouvia na outra quadra da rua. “Menos um pecador no mundo”, dizia para si mesma, “Menos um!”.
Sentia-se no caminho certo e disposta a continuar. Era sua missão na Terra. Uma tarefa divina, um favor a Deus.
O Primeiro foi enterrado durante a madrugada daquele dia, ao lado da igreja. O Segundo jogado no mar, tornando vermelho o fluido salgado da imensidão do planeta. O Terceiro em um rio, terminando de manchar, assim, as águas. O Quarto foi tomado pelo poder do fogo e suas cinzas espalhadas pela cidade. O Quinto morreu no hospital, mordendo a língua de tanta dor. A guerra fazia progresso.
Já era noite quando Madá abriu a porta para o padre. “Mandou me chamar?”, perguntou ele com a voz trêmula. “Se quiser uma confissão é melhor ir até a igreja”. Ela nada respondia, apenas olhava-o profundamente dentro dos olhos.
“Escuta. Se é pelo que aconteceu naquela tarde, por favor, não quero lembranças. Deus sabe o quanto eu me arrependo. Já me castiguei o suficiente.”. O silêncio que continuava deixou o sacerdote ainda mais nervoso.
Estava claro o sofrimento do homem em sua face toda espremida, tinha os dentes presos e as mãos inquietas. Era deprimente continuar ali, e por um momento pensou que acabaria com aquilo, “Bom, se você não vai dizer nada, eu...”
Foi interrompido por um barulho que vinha do armário do quarto. “Quem está ali?” Tentou abrir sem sucesso. “Onde está a chave?” Ela nada disse. O homem aproximou-se violentamente e perguntou de novo. “Em cima da mesa”, ela respondeu sem mudar a expressão sombria.
Abriu o armário tremendo. Que segredos guardaria aquela mulher, a razão de sua tortura diária?
Caiu no chão o Sexto. Com uma taça vazia presa no pescoço, pedia por água, buscando as míseras forças que ainda tinha. Foi a última coisa que pediu na vida.
O desespero do padre cresceu. Seus olhos ficaram vermelhos e sentia todo o corpo tremer. “Assassina!”, gritava. Ela continuava em silêncio, olhando para ele, que agora molhava seu rosto com a água dos olhos. Teve vontade de agredi-la.
Madá foi até a cozinha e trouxe uma taça com água para o sacerdote. “Bebe isso. Você precisa se acalmar.” A vontade que ele tinha era de quebrar a taça na face da moça. “Bebe e senta ali na cama, preciso falar com você.”
Era tudo uma grande loucura, mas ele precisava saber o que ela tinha a dizer. Então obedeceu.
A moça andava de um lado para o outro, mas parecia calma. O desespero estava todo na cama com o padre, que já não agüentava mais aquela situação.
A moça andava de um lado para o outro, mas parecia calma. O desespero estava todo na cama com o padre, que já não agüentava mais aquela situação.
“Eu fiz isso por causa Dele”, disse ela olhando para cima. “Para Ele”. O padre não podia suportar aquilo. “Pára! Eu não quero ouvir essas tolices. Diga logo porque me chamou, que eu já não quero mais ficar aqui.”
Então ela mirou nos olhos dele ainda mais profundamente que antes e começou a despir-se. O padre sabia que não devia ver aquilo, deveria sair correndo daquele lugar que exalava pecado, mas algo o prendia naquela cama. Talvez o olhar de Madá. Talvez o desejo.
Ela aproximou-se devagar, toda nua, pegou na mão dele e a trouxe para junto do ventre. “Deus colocou vida aqui dentro. É seu! Só pode ser seu. De um homem dos Dele. É seu!”
O padre estremeceu. “Não! Não é meu! É do demônio!”. Ele gritou, levantando-se da cama, tomado pela ira. Depois abaixou seu corpo sofrendo até sentar-se no chão
Sentiu-se sozinho no meio do universo. Só existiam ele e seu sofrimento. Levou a cabeça até os joelhos e começou a chorar desesperadamente.
Quase nem percebeu quando foi atingido nas costas pela faca de Madá. A dor que já sentia era muito maior que a própria morte. Pegou a imagem de Cristo que trazia com ele e começou a rezar. A única coisa que podia fazer naquele momento. Era, ele, o Sétimo.
***
O frio daquela noite não incomoda o corpo nu de Madalena, que agora põe-se a ler o livro preto que encontrou ao lado do espelho.
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O frio daquela noite não incomoda o corpo nu de Madalena, que agora põe-se a ler o livro preto que encontrou ao lado do espelho.
Salga os olhos. O pavor e a culpa brotam em seu rosto antes sereno e calmo. O mar de lágrimas lava sua pele arrepiada. Levanta e começa a gritar desenfreadamente as palavras do livro:
“As águas que vês, em que está sentada a prostitua, são os povos e as multidões, as nações e as línguas. Os dez chifres que vês, e a besta, odiarão a prostituta e a deixarão desolada e nua e lhe comerão as carnes e a consumirão no fogo. Porque Deus lhes pôs na mente pôr em execução o seu plano e, de comum acordo, dar à besta a soberania até que se cumpram as palavras de Deus. E a mulher que viste é a cidade que tem a soberania sobre os reis da Terra.”
Vai até o espelho e pode ver-se vestida de púrpura e escarlate, cheia de ouro, pedras preciosas e pérolas. De repente nua outra vez, desolada. Está de frente ao próprio rosto esboçando um sofrimento demoníaco.
Quebra o espelho com as próprias mãos e lança um grito sofrido. É seu corpo partido, é seu horror destruído e largado aos pedaços. Só restava a realidade. A última lágrima sai de seus olhos. Ela olha pra cima. Curva-se para pegar um dos pedaços de vidro no chão. Fere o próprio ventre. Um gemido.
Vinícius Salomão Branquinho
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