sexta-feira, 20 de agosto de 2010

22.22

Vovô sempre dizia que era irônico que as bombas tivessem explodido às 22:22 porque nessa tal de bíblia o apocalipse acaba no 22:21. Nunca entendi muito bem o que ele queria dizer. Não sei o que significa irônico e essa bíblia só vovô tinha algumas páginas dela amassadas que ele não tirava do bolso dele. Ele falava que era só o que tinha sobrado para ele desde as bombas. Do tipo H, dizia ele também, mas nunca entendi também o que queria dizer. Parece que foram várias juntas. Acabaram com o céu. Aquelas páginas eram do vovô do vovô dele e ele não deixava ninguém pôr a mão. Mas depois que ele morreu a gente precisou delas para fazer cinza. Isso sei o que é. A gente põe na água que a gente faz virar fumaça e depois água de novo porque senão quando a gente toma a gente faz cocô mole e aí não dá para queimar e misturar de novo. Vovô dizia que vovô dele dizia que tinha muita água antes, até flutuando no céu, mas hoje só tem aquele negócio de sol que a gente não pode sair embaixo mais que vinte minutos porque é tudo aberto, isso se a gente estiver bem coberto. Vovô me deixou todas as cobertas dele porque à noite faz muito frio, porque ele dizia que me amava muito, mas porque ele acredita que posso usar elas para quando tiver que procurar um lugar melhor para ir daqui. Mas não sei se tem. E não sei se quero procurar. Todo mundo que vai procurar não volta ou volta e logo morre em seguida que volta. Não quero morrer, não quero morrer em seguida. Vovô dizia que tinha muitos animais na terra, terra é isso aqui no que a gente pisa, não só esses pretos fedidos, e muitas plantas verdes, não só essas plantas escuras e retorcidas e cheias de espinho que a gente vê quando olha para fora do abrigo bem rapidinho que senão queima. Essas que a gente faz aqui no nosso abrigo, vovô dizia que existiam muitas na terra, mas acho difícil imaginar. É tudo tão áspero e quente e tudo queima tão fácil lá fora durante o dia. À noite é áspero e frio. A gente dorme juntinho, mas mamãe fala que às vezes dói quando me aperto muito nela porque a pele dela arde muito. A minha também arde às vezes, mas não tanto do que quando respiro assim mais forte.

- V’cê num cansa d’ler is’não? – disse rouca a mulher abrindo os olhos de sono.

- T’procurand’alguma coisa qu’ajud’agente. – respondeu o homem.

Algum tempo se passou sem que nova palavra fosse dita na penumbra em que estavam. Ela sabia que não adiantava discutir. Ela sabia que ele releria aquelas folhas amassadas todas as manhãs como sempre fazia, esperando encontrar alguma solução nova para os problemas que tinham. Ela sabia que não adiantava. Onde ele as encontrara mesmo? Ele olhou as diversas latinhas e percebeu que uma das que davam uma frutinha roxa estava saindo do filete de claridade. Empurrando com a ponta do indicador, ele a recolocou sob o reflexo da luz do sol que partia de um pedaço de vidro posicionado debaixo de uma rachadura no teto de cimento.

- Ob’ebê parou d’respirar durant’a noite.

Ele olhou por cima das folhas de papel em sua mão e viu que o pequenino bebê estava quieto apoiado junto ao flácido e murcho seio da mãe, ainda meio encoberto por um pedaço de tecido azul-acinzentado.

- D’pois eu ponh’junt’com qu’a gent’iver pr’queimar. Deixa’l’no montinho.

A mulher olhou a intensa claridade que castigava uma parede distante no outro lado do cômodo e permaneceu algum tempo imóvel, imersa em seus próprios pensamentos.

- Tos’sangue d’nov’ess’noite.

Novos minutos se passaram mudos. A mulher pensava que a cada nova claridade mais e mais tempo o homem passava calado ao seu lado. Ela mesma perdia vontade de falar. Talvez não houvesse mesmo o que ser dito, e tudo fazia sentido.

- Ess’noit’eu consegui p’gar a rádio d’novo. – disse ele finalmente.

- Ah?

- Mesma coisa. Ele fica chamand’p’ra tod’mund’ir s’encontrar lá naquel’montanha.

- Já num dev’ter mais... ninguém lá.

O homem nada disse. No começo, ele não gostava que a mulher dissesse coisas como aquela, ele pensava que devia ter mais alguém para encontrar, e estas pessoas estariam naquela montanha. Havia algum tempo que eles seguiam na direção dela. Era só sempre seguir na direção em que o sol nascia, dizia a farfalhada voz na transmissão, que em algum momento se encontraria a montanha.

- Quant’emp’faz qu’a gent’aqui? – disse ela num sussurro.

O homem olhou algumas ranhuras na parede de concreto e as contou nos dedos.

- Trezents’e quarent’sete sols.

- Já?

O homem se levantou do canto em que estava enfurnado e se sentou ao lado da mulher. Passou levemente a mão sobre sua testa ressecada, retirou o corpo mole e sem vida do bebê em seu seio e o pôs ao seu lado. Tomou uma canequinha de lata em seus dedos carcomidos e passou a água túrgida de cinzas sobre os lábios ressequidos da mulher. Ela respirava a custo. Ele podia ver os ossos do seu rosto por baixo de sua pele pálida e enrugada. Ela não viveria muito mais. Talvez mais um sol, talvez menos. Sozinho ele chegaria à montanha? E se não houvesse mais ruínas como aquelas em que tinham se alojado? Era um lugar bom, por isso tinham ficado tanto tempo. E se em alguma ruína houvesse alguém que lhe quisesse fazer mal? Ele já não passara por tudo aquilo? Sem a mulher, ele não teria como carregar todas as suas coisas. E se alguém visse a sua fogueira à noite? E se alguém sentisse o seu cheiro? Ou o cheiro do que tivesse que colocar na fogueira? E se alguém lhe roubasse suas coisas? Como ele faria a água virar fumaça e depois fazer virar água de novo para poder colocar as cinzas? Ele tinha que fazer cinzas. E se alguém as roubasse? E se não houvesse mais ninguém? Não era melhor que ficasse ali? Até quando?

- Já. – disse ele.

Durante a noite, a mulher parou de respirar.

O homem ajustou algumas vezes o despedaçado aparelho de rádio que ele carregava consigo e duas vezes conseguira captar a transmissão de rádio, que se repetia, quebrada e chiada. Havia tempos que ele não conseguia aquele sinal. A montanha. Ele olhou pela janela: incontáveis pontinhos brilhantes cintilavam impotentes sobre sua cabeça e pela primeira vez lhe ocorreu o que poderiam ser. Quem os teria colocado lá? Com o bico do sapato, empurrou sua dezena de latinhas para que ficassem sob a débil luz da lua, apertou seus cobertores sujos sobre os ombros e braços e se sentou próximo a elas junto à luz e ao calor do fogo. Tirou uma porção de bolotinhas arroxeadas que cresciam de uma das persistentes plantinhas e enfiou-as na boca com uma mão trêmula e cheirando a excremento. Cuspiu as sementinhas e as enterrou fundo em uma lata maior, onde ele já começara uma nova horta de plantas daquele tipo. Tomou um gole da água cinzenta que estocava numa outra lata e deixou que o sono se apoderasse dele. Seria bom se aparecesse mais um daqueles besouros avermelhados que às vezes apareciam perto de onde ele deixava o monte dos seus excrementos; o gosto das frutinhas roxas já estava saturado na sua língua. No dia seguinte ele queimaria os corpos da mulher e do bebê, como fizera com os demais corpos que lhe tinham sido relegados e como era hábito fazer. Tirou o lenço que a mulher usava em volta do pescoço e o enrolou em torno do seu. Ela não precisaria mais dele.

- V’cê vai c’ntinuar sem’im. – a voz dela ecoou na sua cabeça.

- Vou.

Ao entardecer do dia seguinte, o homem espichou a cabeça encapuzada para fora do beiral de concreto e decorou a direção em que o sol se punha. Era só ir para o outro lado, terminar o que eles tinham começado. Suas coisas já estavam amontoadas em sacolas e mochilas: seu limitado herbário, garrafas plásticas com água túrgida, lonas enroladas, cacos de vidro e de metal, potinhos com todo material orgânico e toda cinza que pôde obter e encontrar, o corpo do bebê enrolado nas vestes da mulher. Em caso de necessidade. Seu desmembrado aparelho de rádio. No horizonte, as sombras de distantes ruínas se alongavam com a luz do sol e evidenciavam uma elevação de terra mais além. Uma montanha na direção onde o sol nascia... há tempos ele e a mulher seguiam naquela direção. Ele deveria chegar às novas ruínas durante a noite, ele não podia parar, ele morreria de frio, ele sabia. Ele não tinha a mulher para se esquentar nem para ajudar a carregar as suas coisas, ele precisaria deixar uma parte naquelas ruínas, mas sozinho ele conseguiria vencer uma distância maior. Ele chegaria ao outro lado ao raiar do sol.

Ao ver que a claridade estava suficientemente fraca, o homem tomou suas bolsas, sacolas e tudo mais o que pôde carregar, enrolou o pequenino corpo em seu peito e se cobriu com os incontáveis trapos e cobertas de que dispunha. Desceu a destroçada escadaria do arruinado edifício e pela primeira vez em muito tempo viu a grande massa escura com pontinhos brilhantes se estender ilimitadamente sobre sua cabeça. Havia outras ruínas ao pé da montanha, ele as via, ele as desejava, mas havia uma grande área deserta que ele deveria vencer se quisesse chegar até elas. Cobrindo a boca e o nariz com o lenço da mulher, o homem iniciou sua caminhada.

A cada passo, a noite ficava mais escura, as antigas ruínas mais distantes e as novas ruínas mais próximas. Ofegante, o homem olhou para trás e à longa distância se lembrou do dia em que ele e a mulher tinham chegado aos prédios destruídos onde estavam. Ela estava gorda, quente e forte. Mas uma daquelas tosses e daquelas tremedeiras a tinha pegado. Ele tateou por baixo do casaco até encontrar o botão do rádio e, girando-o de um lado para outro, captou novamente a velha transmissão. O sinal estava mais forte e mais claro. Ele olhou para frente: a montanha. Ele ouviu sua respiração acelerar excitada por baixo do lenço. Caminhou mais alguns passos e um novo sinal de sintonização partiu do rádio, mais alto e agudo. Sua excitação fez com que suas pernas se movessem cada vez mais rápido; a cada centena de passos, um novo silvo, mais alto e claro, disparava do aparelho. Novos assobios passaram a se confundir com os ruídos antigos e seu coração acelerava cada vez que o radinho soltava uma nova espécie de som. A montanha.

Um dos assobios, porém, fez o homem parar subitamente sua caminhada.

Ele desligou o aparelho, mas alguns dos estranhos assobios permaneciam. Ele conhecia aqueles assobios e havia muito tempo ele não os escutava. Ouvi-los novamente o fez estremecer. Olhando discretamente sobre seus ombros, pontinhos brilhantes, sempre aos pares, corriam furtivos à sua volta, piscavam, sumiam e voltavam a aparecer. Os assobios se confundiam ao som de rápidas patadas no solo arenoso e acidentado e sombras corcundas e arrepiadas se esvoaçavam sob a luz da lua. Ele sabia que aqueles animais só saíam à noite, para caçar uns aos outros; aquela noite, porém, havia algo a mais para caçar. O homem nunca os tinha visto perto das ruínas, mas alguma coisa, talvez a fome, os tivesse empurrado para perto das decadentes construções. Ele olhou para frente: os destroços já estavam próximos; talvez ele conseguisse subir em algum lugar alto, onde os animais não o alcançassem. Devagar, ele colocou suas sacolas no chão e retomou seus passos lentamente. Com o movimento, novos assobios se fizeram à distância. Ao perceber que os pontinhos brilhantes se multiplicavam, o homem começou a correr, derrubando seus pertences à medida que acelerava suas passadas. Alguns dos animais se detiveram nos objetos deixados pelo caminho, abocanhando, pisoteando e disputando cada farrapo sujo. O homem ouviu suas latinhas tilintarem arremessadas na escuridão. Outras passadas e outros rugidos, porém, o acompanhavam ao longo de sua corrida. A poucos metros, o homem distinguiu a sombra de uma escada de metal que pendia por uma parede de concreto, ele tinha que alcançá-la, ela estava tão perto.

Uma golfada de ar quente escapou de seu peito quando algo o empurrou com força por trás e o atirou contra o chão. Ele podia sentir o fedor carnicento que saía das bocas dos animais que o mordiam por toda parte, nuvenzinhas de vapor escapando por suas narinas. Esforçando-se para escapar do trio de predadores que o castigava mordendo seus grossos farrapos, o homem conseguiu se levantar e correr até a precária escada de metal que reluzia à luz da lua. Olhou para trás e viu que as criaturas se debatiam entre si em busca do corpo semidestroçado do bebê, que se desprendera de suas vestes durante a confusão. Exausto, o homem escalou a escadinha de metal e se aconchegou nos resquícios de um edifício, encolhendo-se de medo e de frio; poucos metros abaixo, um alvoroço de assobios e grunhidos selvagens se dissipava devagar, à medida que a claridade de um novo dia voltava a fustigar aquela terra desolada.

Abrigado num pedaço de sombra, o homem pôde distinguir seus pertences espalhados pela superfície descoberta, algumas das frutinhas roxas se queimando sob a perversa luz do sol. Girando o botão do radinho em seu bolso, ele encontrou o sinal que o chamava à montanha, um sinal alto e claro, sem chiados ou interrupções. A mensagem se repetia. Nítida. Enfiou a mão noutro bolso e desdobrou as páginas do diário que ele sempre lia a cada manhã. Grandes rasgos se fizeram em todas elas, havia algumas manchas de sangue e pouco podia ser lido. Esgueirando-se por entre as sombras dos escombros, o homem encontrou um novo abrigo e lá permaneceu, buscando com olhares furtivos e curiosos movimentos que lhe mostrassem algum sinal de humanidade. A mensagem se repetia; do outro lado das ruínas havia uma elevação de terra. A montanha. Ele chegara?

Acocorado em meio a um amontoado de entulhos e pedaços de madeira carbonizados, o homem abraçou seus joelhos e os esfregou com seus braços, garantindo que todo o seu corpo se encolhera debaixo de suas cobertas. Ele sentia que arranhões dispersos ardiam à medida que seu suor escorria sobre eles. Seus músculos latejavam. Sua cabeça pesava... ele chegara? À montanha? A mensagem o chamava. O chamava... o chamava...

O chiado de uma interferência o acordou de um sono sem sonhos. Ele recobrou seus débeis sentidos e pelas diversas rachaduras das paredes viu que avançara a uma nova noite. Não viria ninguém para recebê-lo, para ajudá-lo? E se a mulher estivesse certa? E se não houvesse, mesmo, ninguém? Não, ela estava errada. Ela estava errada. Não teria ninguém escutado todo o estardalhaço da noite anterior? Claro que teria. Com grande esforço, o homem se pôs em pé e caminhou cambaleante até uma janela destruída. A paisagem lá não era muito diferente da paisagem onde havia estado nos últimos trezentos e quarenta e sete dias. Não havia ninguém? Reunindo em seu peito forças havia muito tempo esquecidas, o homem encheu seus pulmões de ar e com dores emitiu um alto e primitivo ruído que ecoou pelas galerias das novas ruínas. Em algum lugar distante na escuridão, os assobios dos animais se excitaram e logo se dissiparam. Com novo esforço, o homem repetiu o grito, mas nada além de seu próprio eco lhe respondia.

Fábio Waki / Melissa S. Domingues

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