sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Vigília

Campinas, 2010

     “Não!”. O que pretendia ser um grito foi menos que um sussurro. Acordou irritado, o relógio marcando noite na cabeceira, a blusa de frio pendurada na cadeira parecendo pessoa, esfregando-lhe no rosto o vazio do quarto. Respirava fundo e, enquanto retomava o fôlego, fingia que o costume tinha ganhado do medo, mas ainda precisaria de muitos pesadelos como aquele pra se habituar a ponto de parar de tremer.
    O problema não era o sonho, pelo menos não enquanto estivesse de olhos abertos. Mas aquela agonia de acordar negando e não lembrar o que, de só reconhecer o silêncio que a voz não conseguia interromper, aquela lacuna na memória era o limite do insuportável. De quem era esse rosto de que ele não se lembrava mais? Sentiu o formigamento acabar pelas pontas dos dedos, os olhos já acostumados ao escuro, o pulso de volta ao seu ritmo. Quase podia dormir outra vez, quem sabe uma noite tranqüila depois de tantas semanas. Quase.
    Foi quando alguma coisa nele quebrou a reação mecânica de resmungar o travesseiro e recomeçar o drama. Deixar o tic-tac niná-lo de novo, remexer e derrubar as cobertas até ficar gelado, sonhar, acordar com o grito aprisionado e levar horas controlando todas as reações bizarras do corpo sem nenhuma explicação pra nada disso. Não, dessa vez ele faria diferente, encontraria alguma razão pra esse desespero todo e aí, quem sabe, dormiria bem enfim. Mas, se nada na sua vida medíocre mudava nunca, por onde começar? Não sabia sequer o conteúdo do sonho que o apavorava tanto, o único vestígio era sempre aquele vulto vazio, borrado na desmemória do acordar. Ia sair e procurar alguém, qualquer um que preenchesse aquele vulto, que coubesse no espaço vago. Só precisava de um rosto que justificasse a agonia e pronto, voltaria a dormir.
    Abriu a velha porta de madeira do seu pequeno quarto e o cheiro de papel antigo e poeira o invadiu, familiar. Se havia qualquer coisa a remarcar na sua vida era a moradia: um cômodo quase escondido numa grande biblioteca particular, cedido muitos anos antes por um velho bibliófilo em troca de pequenos serviços. Separada da mansão por um jardim, onde todos os outros ricos da região tinham casas da piscina, Sir Bernström tinha livros. Montes deles. Até hoje o menino – sim, ele não passava de um menino mesmo quando parecia ranzinza – não tinha muita certeza de como fora parar ali. Ponderava se já não era ele mesmo um amontoado de folhas amareladas e sem vida.
    Cinco passos pra longe da cama e lá estavam as prateleiras imensas e cheias de volumes de todos os tamanhos, metodicamente organizados: “são nossas passagens secretas”, o velho tinha lhe dito uma vez em tom sério de segredo, de mistério sagrado. Passava por ali sempre com muito respeito e cuidado, mas as sensações hoje eram outras e era como se ele não tivesse tempo a perder com rituais. Não estava se deixando pensar porque não encontraria solução e estava desesperado e cansado demais para se render ao pesadelo: ainda se fosse até o fim, se não acordasse antes da hora...
    Cambaleava pelos corredores sem arriscar-se a acender uma luz, guiado por alguma dessas loucuras que a insônia dispara e só a manhã sabe frear. E às vezes, nem ela. Escolheu pelo cheiro ou pelo impulso uma obra em cada corredor entre séculos, gêneros e línguas diversas até ver o sol ameaçar atrás das grandes janelas de vidro. Ainda não era manhã, mas já havia um pouco de claridade sobre as mesas e horas a fio ele folheou páginas e páginas das histórias mais desconexas, procurando qualquer coisa que assustasse o suficiente para fazer parar, alguma figura qualquer que ele precisasse negar.
    Quando o dia se fez ele vagueou pelas ruas, à caça de caretas e agonias, certo de que só um alguém muito feio ou uma expressão de dor violenta poderia ser colada no lugar do tal vulto e assim ele sonharia concreto e lembrado, fácil de desfazer depois. Se pudesse inventar um nome qualquer pro seu medo das madrugadas, ele viraria companhia por mais horrendo que fosse. Chegou a entrar em um ou dois hospitais, a encarar as estátuas de uma igreja, olhar o cemitério, mas nada parecia suficientemente apavorante.
    Voltava derrotado para a mansão quando cruzou com um menino bastante esquisito, de olhos atentos. Ele também parecia perdido num mundo próprio, à procura de qualquer coisa nos rostos alheios quando as duas faces se puseram em sintonia ou em transe: reconheceram-se. Depois disso, tudo foi confuso e rápido demais.
    Sem uma palavra, a corrida de volta à biblioteca parecia uma competição, uma maratona alucinada. Voltaram - ambos pálidos - com todos os livros para os seus lugares, vasculharam corredores em busca de outro objeto perdido, estavam tão perto, bem ali naquela prateleira em frente, escondido atrás da ampulheta... “Não!”
    Acordou incrédulo. Dormira no corredor, contra toda a adrenalina e a dois passos do último grão de areia e agora simplesmente não encontrava o menino em parte alguma. Revirou o cômodo, voltou ao seu pequeno quarto e sacudiu as cobertas como se o garoto tivesse se perdido dentro do sonho. Nada. De volta ao corredor da confusão, notou que a ampulheta estava virada, que alguém pusera o tempo para recomeçar. As perguntas vinham-lhe aos milhares e só agora, estatelado defronte o relógio de areia ele percebia ter procurado a criança sem nenhuma claridade. Mas a biblioteca tinha janelas enormes para receber a luz do dia.
    Dia? Há quantas semanas estaria preso naquela hora entre o fim da tarde e o começo da noite? Encontrara enfim um rosto, mas ele não assustava em nada senão pela continuação do enigma. Olhou de novo a ampulheta tão displicentemente posta bem em frente àquele amontoado de papéis amarelados que alguém amarrara em qualquer época distante; e ainda sob o peso da sala vazia ouviu, clara, a voz de menino: “Quem é você?”.
    A pergunta ecoou e por um instante ele pareceu se livrar do delírio. Levantou decidido a retirar dali a ampulheta e descobrir o que quer que houvesse nos papéis mas,  tão logo aproximou-se da prateleira, entendeu que não era o objeto que não se mexia, eram as mãos. Quando chegavam muito perto, congelavam no ar sem forças senão para descer de volta ao longo do corpo. “Quem é você?”. Estava tão preocupado em sair do pesadelo, em vencer aquela hora interminável, começar um dia de verdade para... Para que? Estivera tanto tempo suspenso no silêncio, tanto tempo calado, sem dar atenção sequer às palavras dos livros, procurando desesperadamente por figuras que esquecera o próprio nome. Quem era ele?
    A interrogação pairava pesada e o tom da voz lhe dava a certeza de que ela só podia pertencer ao menino da praça. O misterioso menino que conhecia o caminho da mansão e o lugar de cada obra entre tantas estantes, que sabia mesmo da sua importância como passagens secretas e estava ali no recomeço daquele dia eterno escancarando-lhe diante dos olhos a mais secreta das passagens sem que ele soubesse abri-la. Não podia acreditar que não soubesse o próprio nome, que o tempo estivesse outra vez pela metade e ele não conseguisse ser mais que um vulto. Imóvel, as mãos caídas sem força, os olhos desvairados percorrendo títulos de livros à procura de qualquer nome que pudesse dar a si mesmo... Aquele dia infernal começara com uma busca insone por qualquer rosto que lhe disfarçasse o medo, qualquer nome que o transformasse em riso e agora o pavor era de não ter nenhum rosto para alguém encontrar.
    Conhecera tantas pessoas, tantas personagens, deveria ter muitos nomes na ponta da língua. Era só dizer qualquer um deles, gritá-lo para calar aquela pergunta estúpida que retinia em seus ouvidos. Forçou-se a parar os olhos na ampulheta, abriu a boca e... Fechou-a novamente! Nenhum nome na memória, nenhum som na garganta.  Amarelo e sem vida como os velhos volumes em volta, ele seria uma passagem secreta pra onde se ninguém o descobrisse?                                               
    Mais uma hora ia se completando naquele tempo paralelo que o engolia a cada inspiração sem resposta quando a areia rompeu o vidro e a realidade, encheu a sala como tempestade de deserto, monstruosos grãos aglomeravam-se em volta de todo o corpo enquanto ele tentava alcançar os papéis e sentia as mãos serem tragadas pelo pó. O vidro estilhaçado ameaçando a garganta, olhos fechados de pânico e proteção, tudo no silêncio massacrante – soterrado no próprio tempo, nas próprias lembranças mudas. A areia cobria até o pescoço quando ouviu de novo o menino indagar: “Quem é você?”.
    Desesperado, quis dizer quem era independente de nome ou história, dizer qualquer coisa para não se afogar em passado e poder, quem sabe, ser alguém depois que tudo aquilo passasse. Mas a areia veio violenta preencher poros, ele não era ninguém, um vulto qualquer cujo tempo estava esgotado, um borrão que o último grão vinha calar de uma vez por todas. “Nã...” – tarde demais pra um sussurro, mas ele nunca teria voz pro grito.


    Depois que o menino partiu, crescido e idêntico ao pai, para viver no deserto distante, o filho único e em que Sir Bernström apostara todas as fichas, em quem pusera seu nome, seus sonhos, suas esperanças e metas, alguns dizem que ele enlouqueceu. Enfiado a um canto de sua grande biblioteca, primeiro ele dizia prestar serviços ao dono da casa em troca do quarto inexistente, depois as pessoas pararam de procurá-lo.

    Dizem que escreveu durante dias suas memórias, seu passado, que acumulou todas as fotografias, documentos, cartas e escondeu todo o inventário em algum vão nas prateleiras entre os livros que chamava de passagens secretas e que o segundo Gustaf Bernström jamais tivera desejo algum de abrir. Renegadas a sua companhia, os seus cuidados e seu maior tesouro, o velho bibliófilo comprou uma ampulheta e repete desde então a hora em que o perdeu de vista, em que o deixou levar embora todos os seus planos. O sonho é que antes que caia o último grão, o garoto volte com um pedido de desculpas e a alma do pai.

    Há quem acredite que emudeceu de revirar a ampulheta e reviver a angústia. Dormia no chão e seu quarto imaginário era um quadrado, a cadeira no canto, com o casaco que o garoto não quis vestir antes de ir-se embora.

Ana Luiza Rocha do Vale

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